quarta-feira, 13 de julho de 2016

ESCREVER É REESCREVER: análise das qualidades discursivas da objetividade e concretude em diferentes versões de produções textuais

RESUMO: Este artigo busca observar as qualidades discursivas da objetividade e concretude em textos produzidos por três alunos da disciplina de Leitura e Produção Textual do curso de Letras da UFRGS. Estas qualidades foram selecionadas para o propósito do artigo por aparecerem frequentemente nas críticas recebidas pelos alunos. Elas foram investigadas qualitativamente, através da leitura dos textos dos alunos mutuamente entre si, tecendo observações críticas levando as duas qualidades em consideração. Notou-se, pelos resultados, que, ao longo das reescritas, os textos foram tomando as qualidades de concretude e objetividade, não perfeitamente, mas de maneira considerável quando comparando as versões iniciais com as reescritas. Espera-se, com este artigo, prover exemplos de como é possível melhorar estas qualidades através de vários recursos textuais.          

Palavras-chave: objetividade, concretude, produção textual.

1 INTRODUÇÃO

            Este artigo tem como principal objetivo analisar os textos acadêmicos de três alunos do primeiro semestre do curso de Letras, produzidos por intermédio da disciplina de Leitura e Produção Textual da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O objetivo da disciplina foi, através de produções de textos acadêmicos, trabalhar os critérios básicos para a organização, diálogo, objetivo e verossimilidade da escrita textual.
            Destes critérios, será trabalhada uma seleta constituída das qualidades discursivas de objetividade e concretude conforme teorizadas por Guedes (2009). Estes dois critérios foram selecionados como foco para o artigo não só por uma questão de concisão, mas porque apareceram com grande frequência nos pareceres críticos recebidos pelos autores (cf. Metodologia, Tabela 1).
            Para explorar tais critérios, serão utilizados os textos desenvolvidos pelos três alunos sob uma ótica de pesquisa qualitativa, com os mesmos lendo e fazendo análises críticas de seus textos. Em vista disso, será possível avaliar suas evoluções ao longo do curso.

2 REVISÃO TEÓRICA: Produção textual e as qualidades discursivas

Para tratar de produção textual, é preciso estabelecer o conceito de texto. Ao descrever as propriedades de um texto, Platão e Fiorin (2006) o definem como “um todo organizado de sentido, delimitado por dois brancos e produzido por um sujeito num dado espaço e num dado tempo” (n.p.). Isso quer dizer que as frases estão relacionadas entre si, e que o sentido de uma delas depende do contexto. Ao entender o texto como uma manifestação da linguagem, Guedes (2009) atribui a ideia de processo na sua definição:

O texto é uma sempre imperfeita tentativa de produzir efeitos sobre o leitor, que, por imperfeita, é perfectível, tal como a linguagem na sua tentativa eternamente renovada de produzir o entendimento entre os homens. Reescrever o texto, exercer a segunda e a terceira e quarta chance é um direito do escritor. Direito do leitor é o de receber uma explicação mais clara a respeito daquilo que fez um honesto esforço para entender. Escrever, por isso, é reescrever, uma prática, de resto, invariavelmente verificada na forma de trabalhar de todos os escritores resgatados pela tradição letrada. (GUEDES, 2009, p. 82)

Em seu manual, Guedes apresenta ainda uma distinção entre a composição, a redação e a produção de texto, expressões sinônimas que designam a ação de escrever textos. A palavra composição, usada para designar textos escritos na escola, é a mais antiga: vincula-se à mesma teoria que dá embasamento à gramática tradicional e vê a linguagem como instrumento de organização e de expressão do pensamento dentro dos princípios da chamada lógica formal. Interessa mais a correção do processo de raciocinar do que a finalidade com que o raciocínio é enunciado. Já a palavra redação expressa a eficiência tecnocrática, cujo objetivo é seguir modelos de textos. Nessa visão, a linguagem é um meio de comunicação, um código pelo qual o emissor cifra sua mensagem, que será decifrada pelo receptor. Finalmente, a produção de texto é a ação de escrever. Ao invés de compor ou redigir, trata-se de produzir, de transformar, mudar, mediante a ação humana, o estado da natureza com vistas a um interesse humano. Em razão disso, a linguagem é vista como forma de ação, processo de estabelecer vínculos, de criar compromissos entre os interlocutores (GUEDES, 2009, p. 88-90).
Portanto, a visão de ensino de produção textual para Guedes (2009) está pautada na interação, visto que concebe a escrita como uma maneira de interagir na sociedade. Nessa perspectiva, Kock e Elias (2006) apontam estratégias que devem ser usadas por quem escreve, como, por exemplo, a “revisão da escrita ao longo de todo o processo guiada pelo objetivo da produção e pela interação que o escritor pretende estabelecer com o leitor.” (p. 34). A compreensão de produção textual como um processo, que tem como característica o exercício de reescrita constante em diferentes momentos (na revisão feita pelo autor durante o processo e em versões após a avaliação de interlocutores, por exemplo), resultou na configuração das qualidades discursivas propostas por Guedes (2009). A interpretação dessas qualidades discursivas que toda produção textual deve conter está descrita na seguinte definição proposta pelo autor:

Qualidades discursivas são um conjunto de características que determinam a relação que o texto vai estabelecer com os seus leitores por meio do diálogo que trava não só diretamente com eles, mas também com os demais textos que o antecederam na história dessa relação. Todo autor tem de levar em conta que seu leitor foi leitor de outros textos e que, com essa bagagem de leitura, lê cada novo texto e o avalia a partir de um conjunto de critérios de valor que foi formado ao longo, não só de suas leituras, mas também ao longo do que a escola foi lhe ensinando a respeito do valor dessas leituras. (GUEDES, 2009, p. 94)

Diante disso, o autor nomeia-as de: unidade temática, objetividade, concretude e questionamento. Para Guedes (2009), a unidade temática permite uma chave e uma direção no trabalho de atribuição de sentido a cada uma das palavras que o leitor lê, assim como a relação que ele estabelece com e entre elas. Já a objetividade consiste no fornecimento de todos os dados necessários para que a mensagem seja clara para o leitor. Segundo o autor, texto objetivo não significa texto curto, frio, mas um texto capaz de perceber e mostrar os objetos; é necessário dar ao leitor todos os dados necessários para o entendimento do que se pretende dizer – e o texto precisa mostrar mais do que meramente dizer. Nesse sentido, é a concretude que irá garantir que a mensagem seja expressa com precisão, permitindo que o leitor atribua sentido ao escrito, a partir dos recursos expressivos empregados pelo escritor. Além disso, é necessário que o escritor envolva seu leitor, mobilize suas energias intelectuais, convocando-o a participar do texto, através da última qualidade – o questionamento.
A ação de escrever combina as qualidades discursivas com alguns aspectos formais da língua, como: organização de parágrafo, coesão/coerência, morfossintaxe e aspectos semânticos. Além disso, conforme Kock e Elias (2006) destacam, o processo de escrita exige do escritor conhecimento da ortografia, da gramática e do léxico de sua língua – o conhecimento linguístico. Esse aprendizado é adquirido ao longo da vida através das diversas interações comunicativas de que o sujeito participa em sociedade e, de forma sistematizada, na escola. É preciso destacar, também, os conhecimentos enciclopédico (sobre particularidades diversas do mundo), textual (sobre os modelos ou gêneros de texto) e interacional (sobre como configurar a escrita para o leitor reconhecer os objetivos do escritor). Esses aspectos, reunidos na “bagagem cultural” do escritor – ou no seu conhecimento prévio – constituem-se em ferramentas importantes para a produção textual e a eficiência do seu processo interativo.

3 METODOLOGIA: Uma análise qualitativa e interpretativa

O corpus desta pesquisa é constituído de textos escritos durante a cadeira Leitura e Produção Textual (Faculdade de Letras, UFRGS), conforme instruções da professora ministrante. O corpus, reunido em documentos impressos incluídos nesta pesquisa, foi composto durante o primeiro semestre letivo do ano de 2016. Seus autores foram os alunos Aluno 84 (A),  Aluno 90 (B) e Aluno 97 (C). As instruções que guiaram a composição dos textos foram, resumidamente, (I) que se escrevesse uma primeira versão de cinco tarefas distintas; (II) que, após a entrega e a devolução desta versão, reescrevesse-se esta procurando atender a pareceres críticos presenciais, falados em aula pelos alunos e pela professora, e a um parecer escrito formulado pelas monitoras; e (III) que, por fim, submetesse-se estas duas versões à professora ministrante, em conjunto com o parecer escrito e uma ficha de critérios de avaliação a partir da qual seria determinada uma nota variada de D a A. As temáticas abordadas nas cinco tarefas serão especificadas na tabela abaixo. Para as primeiras três tarefas, elaboraram-se diários dialogados registrando observações pessoais a respeito do processo de escrita ou das aulas ministradas, os quais foram entregados e desenvolvidos junto com suas respectivas tarefas. 
            Dos critérios de avaliação supracitados, dois são tomados como ênfase analítica. São eles: a objetividade e a concretude, os quais já foram trabalhados na seção anterior. Eles são considerados a partir de uma ótica de pesquisa qualitativa, a qual descreve e explica os dados trabalhados, sem avaliar quantitativamente. O instrumento de compreensão das duas qualidades discursivas acima é – neste trabalho – a leitura individual dos textos, com atenção especial aos dois critérios acima. Abaixo, segue uma tabela em que estão contidas informações a respeito das tarefas textuais.




Tabela 1 – Tarefas textuais
(Nº da tarefa) Temática
(Aluno autor) Título 1ª versão/Reescrita (se diferir)
Observações remetentes a objetividade e concretude nos pareceres da 1ª versão
(em paráfrase)
(1) Apresentação pessoal
(A) Uma infância extraterrestre
(B) Fascista? Mero Ultraman distímico/A raiva, a casca, o sensível, no plano interno e externo
(C) Quem sou eu.
(A) “tornar mais objetiva e direta a introdução”
(B) “fornecer informações a respeito de você, esclarecer metáforas e termos”
(C) “mais informações sobre você para que o leitor a conheça melhor”
(2)
Relato de experiência que gerou um aprendizado
(A) Discurso de formatura/A página de agradecimentos
(B) Superego
(C) Meu grande aprendizado
(A) “dar exemplos e explicitar o aprendizado”
(B) “contextualizar melhor os fatos apresentados, explicitar o aprendizado”
(C) “detalhar e explicar, prover uma ‘imagem’ à experiência”
(3)
Descrição de um processo
(A) Como entregar um quebra-cabeça (ou como diagnosticar-se apaixonado)
(B) Vivendo um fim de semana com desequilíbrio neuroquímico/0
(C) Como tirar um carro de uma garagem./Como minha mãe tira o carro da garagem
(A) “fornecer imagens mais claras, usar definições objetivas”
(B) “explicitar e esclarecer o processo, objetivar o texto, dar informações às metáforas”
(C) “explorar um pouco mais a cena, descrever os objetos para facilitar a percepção do leitor”
(4)
Memorial de leitura
(A) Revivendo as leituras do passado
(B) Comunhão por literatura
(C) Leitura Como Prática Social
(A) -- (entregou fora do prazo)
(B) “explicar a história do livro e as expressões empregadas, vincular com a teoria”
(C) “trabalhar e articular o exemplo do livro com a teoria”
(5)
Artigo de opinião
(A) Análise sobre a relação entre o atraso na entrega e a demanda de trabalhos acadêmicos do curso de Letras da UFRGS
(B) Modernidade, informação e o tempo célere
(C) Geração Y e anacronia tecnológica: fatores e percalços/A sociedade e Tecnologia
(A) “embasar argumentos, esclarecer expressões”
(B) -- (não recebeu observação negativa)
(C) “ser mais objetiva quanto a descrição do tema, objetivo, argumentos e contra-argumentos”


4 ANÁLISE: Objetividade e concretude na primeira versão e reescrita

            Nesta seção, provém-se um panorama da qualidade de objetividade e concretude de cada tarefa e cada autor, notando deficiências, progressões e trechos exemplares. Cada parágrafo trata de uma tarefa, comparando suas primeiras versões (V1) e reescrita (RE) entre os autores A, B e C, nesta ordem.
            Em 1A, o autor utilizou uma rememoração da infância para introduzir a si mesmo. Em tanto V1 e RE, esse processo, inicialmente descrito abstratamente como “regressão biográfica”, é logo concretizado com metáforas – é referido como um “abrir de gavetas”, no sentido de revisitar memórias, cujo desenvolvimento o texto faz com objetos concretos: grampeadores e papel para significar a experiência de “uma burocracia infantil” como brincadeira de infância, por exemplo. Esse rememorar eventualmente alcança o tempo presente, deixando objetivo o propósito de auto-introdução, pois traça uma narrativa a respeito do narrador. 1B, por sua vez, em sua V1, é marcadamente vaga em sua terminologia, como quando o autor se declara “(...) um amante de cianofíceas, diatomáceas e daquelas pobres vítimas transformadas em sushi (...)”, sem mais exemplos para concretizar suas intenções com tal frase, ou explicações que a tornariam objetiva, sem necessitar de um conhecimento prévio de biologia a respeito do qual o público não teria. Há também falta de informações explícitas que façam o leitor entender o “por que” do texto. Ambas estas deficiências são mantidas na RE. 1C também é vaga nas suas definições; por exemplo, ao tentar explicar os motivos que a levaram a escolher a graduação de Letras, é escrito da mesma forma na V1 e RE: “Talvez, por já ter tido uma experiência em sala de aula e ter feito a diferença do jeito que eu sempre quis fazer”. Na V1, não é possível saber qual foi a experiência em sala de aula que a aluna teve, pois não são oferecidos dados que permitam ao leitor comparar com o que sabe sobre o tema, prejudicando a objetividade do texto. Na RE, o parágrafo anterior ao recorte cita que essa experiência foi obtida dando aulas de inglês. Verifica-se que a aluna usa uma expressão abstrata e genérica (“fazer a diferença”) e não desenvolve com clareza como seria o jeito que ela “sempre quis fazer”, como seria essa forma de dar aulas idealizada por ela. O leitor precisa levantar questões para tentar compreender o texto, pois não há elementos concretos para avaliar a descrição.
            2A, V1, começa-se de uma maneira dispersa, mencionando diversos termos abstratos – “(...) História da Imprensa à Fotografia, passando pelas mídias de comunicação (...)” –, mas sem escolher um ou uma seleta destes para concretizar a partir de exemplos. A compreensão objetiva do leitor também é prejudicada no sentido de que é difícil, inicialmente, perceber que problema o autor propõe; há a descrição de uma trajetória de formação acadêmica geral que só vai se condensar numa dificuldade de realização de um TCC (o problema propriamente dito do texto) pelo final da escrita. Na RE, contudo, essa trajetória geral é resumida ao primeiro parágrafo, com o resto (a maior parte) da escrita tratando da dificuldade com o TCC, incluindo descrições físicas desse processo, ajudando a tornar o texto menos abstrato. Na RE, também é mais claro o aprendizado – perceber a importância da gratidão quanto às pessoas que ajudam – graças a esse foco; na V1, em comparação, o aprendizado é ambíguo, de pouca objetividade, pois se divide entre essa gratidão e outra conclusão posterior, de que “o esforço para cumprir as obrigações acadêmicas e a inquietação pelo saber foram as ferramentas utilizadas para [concretizar] o desejo por uma vida próspera”. Em 2B, quando comparada a 1B, há maior preocupação com a contextualização do texto para que o leitor compreenda objetivamente, tanto na V1 quanto na RE (por exemplo, quando introduz um conceito freudiano – V1: “O auxílio foi Freud, mais especificamente a sua hipótese do superego. O superego seria uma internalização de preceitos morais que (....)”; R: “(...) aprendi sobre o Inconsciente, sobre a estrutura psíquica humana postulada por Freud, e entendi de onde esses sentimentos recorrentes (...)”). O autor também consegue clarificar o problema do texto: na V1, há toda uma cena vagamente descrita com uma experiência com uma droga desconhecida; na RE, o autor especifica a droga e que tipo de aprendizagem ela trouxe. Em 2C, a autora narra situações vivenciadas e características da personalidade de seu irmão autista, vítima de bullying na escola. Neste relato, a objetividade e concretude são cumpridas. Por exemplo, um trecho que está presente em ambas versões, e foi pouco alterado na RE: “Hoje, ele está no 6ª ano e ainda é hostilizado por preferir brincar com tampinhas de garrafas do que jogar futebol. Por se muito literal e não entender metáforas. Por ser tão peculiar, gostar e saber de coisas como espécies de peixes e lutadores de WWE”. O trecho “mostra” as ações do personagem por meio de exemplos concretos, oferecendo dados necessários para o leitor entender objetivamente o que a autora quis dizer. A presença de objetividade e concretude no discurso auxiliam o leitor a construir uma imagem clara do personagem, bem como justificam o emprego do adjetivo “peculiar” na sua caracterização.
            3A tem objetividade, no sentido de que é compreensível sua proposta de descrever a influência do apaixonar no comportamento, em ambas as versões. Porém, os exemplos, nestas, são demasiadamente subjetivos – por exemplo, na V1: “você sente vergonha em admitir que o simples fato de comer um hambúrguer desencadeou tal pensamento”. Esse pensamento é definido previamente como uma lembrança, mas lembrança de quê?  Apenas na RE, que expande sobre os exemplos da V1, é nítido esse contexto: a lembrança então é definida como “bons momentos na companhia da pessoa”. Ainda assim, a RE não esclarece tudo: mantém, por exemplo, a frase “o encontro casual virou encontro de casal”, afirmação nunca contextualizada: que encontro casual? 3A tem apenas descrições do narrador saindo sozinho, com o único contato social sendo virtual. 3B apresentou muito pouco de ambas qualidades, em ambas versões: o propósito da V1, por exemplo, seria de difícil depreensão se não fosse pelo título “Vivendo um fim de semana com desequilíbrio neuroquímico”. E, ainda assim, resta contextualizar: o que é um desequilíbrio neuroquímico? Como muitas outras metáforas no texto, isso nunca é explicado. Como em 1B, o autor também abusa de referências de pouco senso comum: fala-se de “Tchernobog” do “Fantasia da Disney” e do compositor Edvard Grieg, citando a sua música “A Manhã”, ambos dificilmente conhecidos pelo público-alvo do texto. Na RE, houve pouco progresso: o autor ainda demonstrou dificuldade em ser objetivo, com, por exemplo, a metáfora de um “pântano de dor pesada”, subjetiva e abstrata: como é o pântano? Como é a dor?  Em 3C, por sua vez, a narradora descreve o processo de tirar o carro de uma garagem objetivamente. Um trecho selecionado da V1 descreve a ação da seguinte forma: “Guie-se através dos espelhos retrovisores para não bater em paredes, cercas ou seres vivos”. O trecho similar foi reescrito com mais detalhamento da ação: “Ela se guia vagarosamente através dos espelhos retrovisores para não raspá-los nas paredes estreitas e de cimento puro da garagem ou até mesmo bater em gatos, que eventualmente passam por ali”. Em ambas as versões, o texto oferece os dados necessários para o leitor entender o que o autor quis dizer: ao tirar o carro da garagem, em marcha ré, é preciso guiar-se pelos espelhos retrovisores. Porém, no texto da reescrita o critério da concretude está evidenciado, visto que a primeira versão não especifica os tipos de obstáculos do percurso. Na RE, são dados parâmetros para que o leitor possa compreender melhor a função dos retrovisores naquela cena específica, pois oferece características particulares do cenário e personagens onde a ação é praticada: as paredes da garagem são estreitas e os seres vivos são animais de estimação.
            4A fala da sua experiência de leitura na infância, a qual exemplifica com características dos textos lidos, de caráter jornalístico e objetivo, logo associando isso à sua experiência posterior de preferir leituras objetivas à literárias, traçando, assim, uma narrativa causal e compreensível. Também aproveita elementos para associar à teoria: cita como seu pai lhe trazia periódicos e o associa isso à importância social do processo de leitura, por exemplo. A V1 e RE diferem pouco, sendo apenas notável na RE uma remoção de exemplos que não foram trabalhados intensivamente na V1, contribuindo para com o critério da objetividade. 4B cumpre os critérios em todas as versões, inclusive atendendo à demanda de que especificasse uma referência a “Dom Casmurro” de Machado de Assis: na RE, clarifica essa relação entre o personagem machadiano e o livro que leu: neste, também há um “narrador desconfiável” cuja história relatada pode não ser verdadeira, constatação desenvolvida ao notar que este se contradiz em seu relato. 4C cita objetiva e ilustradamente o exemplo de um livro que foi decisivo para sua formação como leitora. Por exemplo, um trecho presente na V1 e RE: “O livro era ‘Mar Morto’, de Jorge Amado; ele trazia a trajetória dos homens do mar, velejadores e marinheiros da Bahia. O livro me iniciava em um tema que já era de meu interesse, era um assunto que despertava a minha curiosidade, em função do meu profundo interesse por história, de ouvir histórias sobre os imperadores romanos, sobre as trajetórias dos povos egípcios”. Quando a autora descreve que aquilo lhe lembrava dos egípcios ou dos romanos, está atribuindo mais concretude ao texto, na medida em que oferece dados para o leitor avaliar suas preferências de leitura – as civilizações históricas citadas são elementos concretos que permitem ao leitor apreender sobre o papel da leitura na vida da narradora. Dessa forma, o critério da concretude se mostra complementar à objetividade, pois a primeira qualidade discursiva está presente nos exemplos, que, por sua vez, deixam claro o ponto de vista da autora sobre o tema, contribuindo para tornar o texto objetivo.
            5A trata do estresse de acadêmicos devido à carga horária curricular, fundamentando seus argumentos inteligivelmente. A maioria destes, porém, embora claramente enunciados, carecem de concretude. Por exemplo, cita uma frase de senso comum de Albert Einstein ao justificar um contra-argumento de que as dificuldades de horário são apenas uma questão de organização: por mais notório que Einstein tenha sido, uma frase não se equipara a uma pesquisa científica como defesa de afirmação. Na RE, não chega a substanciar esse argumento; contudo, referencia uma pesquisa adicional a um trecho que já estava fundamentado em V1, reforçando a concretude deste outro argumento. 5B não demonstra tal ausência de referências: ao argumentar que a tecnologia da modernidade acelera a percepção do tempo de seus sujeitos, associa essa constatação uma tese de PhD que a suporta, citando, inicialmente, resultados experimentais favoráveis contidos nesta, os quais são detalhados com teorias psicológicas mais adiante, também fundamentadas a partir desta tese. Sua única deficiência é no contra-argumento: constata que seria de difícil fundamentação, o que tenta remediar ao sugerir a pesquisa sobre um conceito que sequer explica. Em 5C, observa-se como a manutenção do texto da primeira versão, sem sofrer alterações na versão reescrita, impediu o aprimoramento das qualidades discursivas. A autora, ao tratar sobre as consequências do acesso à internet na vida dos usuários, mantém o trecho escrito da mesma forma em ambas as versões: “É fato que o controle que se tem atualmente sobre as informações é vago, uma forma de não apenas conscientizar seu uso adequado, mas também interferir no ciclo vicioso que há no convívio entre jovem e tecnologia a partir do diálogo e autonomia dos pais”. Percebe-se que a temática não está claramente desenvolvida, o que levanta questões durante a leitura: Quem tem o controle vago dessas informações? De quais tipos de informações está se falando? Os pais devem dialogar com os jovens com autonomia (ou seria autoridade)? Dessa forma, o leitor tem prejuízo na imediata compreensão, precisando reler para tentar apreender o conteúdo do texto, o que significa ausência de objetividade – não são oferecidos todos os dados necessários para o leitor entender o que o autor quis dizer – e de concretude – não são usadas palavras ou termos que designam conjuntos definidos de ideias.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
           
            Através da análise dos trechos selecionados, foi possível estabelecer relações entre a qualidade discursiva da objetividade e da concretude. Constatou-se que um mesmo recorte de texto pode ser objetivo mas sem concretude (cf. 5A), mas na maioria dos casos essas qualidades foram complementares para estabelecer o cumprimento das propostas. A compreensão dessas qualidades do texto como critérios de análise foi fundamental para se desenvolver uma consciência crítica sobre o corpus do estudo. Apesar das cinco tarefas possuírem modelos textuais de escrita diferentes, em todas foi possível executar a análise proposta, ou parcialmente, em alguns raros casos como 3B.
A análise, no geral, mostra uma evolução, um aprimoramento entre a primeira versão e a reescrita das tarefas, em relação às duas qualidades discursivas verificadas. Há uma progressão clara entre as primeiras tarefas e as últimas, no sentido de que há maior cumprimento das qualidades gradativamente. As deficiências de objetividade e concretude não desaparecem, mas a ocorrência diminuiu. Os resultados obtidos confirmam a importância do exercício da reescrita como mais uma ferramenta disponível – e necessária – para a efetiva interação entre escritor e leitor no processo de produção textual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUEDES, Paulo Coimbra. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

KOCK, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender – os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.


PLATÃO, Francisco; FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. 5ª ed. São Paulo: Ática, 2006.

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