RESUMO: Este artigo busca
observar as qualidades discursivas da objetividade e concretude em textos
produzidos por três alunos da disciplina de Leitura e Produção Textual do curso
de Letras da UFRGS. Estas qualidades foram selecionadas para o propósito do
artigo por aparecerem frequentemente nas críticas recebidas pelos alunos. Elas
foram investigadas qualitativamente, através da leitura dos textos dos alunos
mutuamente entre si, tecendo observações críticas levando as duas qualidades em
consideração. Notou-se, pelos resultados, que, ao longo das reescritas, os
textos foram tomando as qualidades de concretude e objetividade, não
perfeitamente, mas de maneira considerável quando comparando as versões
iniciais com as reescritas. Espera-se, com este artigo, prover exemplos de como
é possível melhorar estas qualidades através de vários recursos textuais.
Palavras-chave: objetividade, concretude,
produção textual.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como principal
objetivo analisar os textos acadêmicos de três alunos do primeiro semestre do
curso de Letras, produzidos por intermédio da disciplina de Leitura e Produção
Textual da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O objetivo da
disciplina foi, através de produções de textos acadêmicos, trabalhar os
critérios básicos para a organização, diálogo, objetivo e verossimilidade da
escrita textual.
Destes critérios, será trabalhada
uma seleta constituída das qualidades discursivas de objetividade e concretude conforme
teorizadas por Guedes (2009). Estes dois critérios foram selecionados como foco
para o artigo não só por uma questão de concisão, mas porque apareceram com
grande frequência nos pareceres críticos recebidos pelos autores (cf.
Metodologia, Tabela 1).
Para explorar tais critérios, serão utilizados
os textos desenvolvidos pelos três alunos sob uma ótica de pesquisa qualitativa,
com os mesmos lendo e fazendo análises críticas de seus textos. Em vista disso,
será possível avaliar suas evoluções ao longo do curso.
2 REVISÃO TEÓRICA:
Produção textual e as qualidades discursivas
Para tratar de produção textual, é preciso
estabelecer o conceito de texto. Ao descrever as propriedades de um texto,
Platão e Fiorin (2006) o definem como “um todo organizado de sentido,
delimitado por dois brancos e produzido por um sujeito num dado espaço e num
dado tempo” (n.p.). Isso quer dizer que as frases estão relacionadas entre si,
e que o sentido de uma delas depende do contexto. Ao entender o texto como uma
manifestação da linguagem, Guedes (2009) atribui a ideia de processo na sua
definição:
O texto é uma sempre imperfeita
tentativa de produzir efeitos sobre o leitor, que, por imperfeita, é
perfectível, tal como a linguagem na sua tentativa eternamente renovada de
produzir o entendimento entre os homens. Reescrever o texto, exercer a segunda
e a terceira e quarta chance é um direito do escritor. Direito do leitor é o de
receber uma explicação mais clara a respeito daquilo que fez um honesto esforço
para entender. Escrever, por isso, é reescrever, uma prática, de resto,
invariavelmente verificada na forma de trabalhar de todos os escritores
resgatados pela tradição letrada. (GUEDES, 2009, p. 82)
Em seu manual, Guedes apresenta
ainda uma distinção entre a composição, a redação e a produção de texto,
expressões sinônimas que designam a ação de escrever textos. A palavra composição, usada para designar textos
escritos na escola, é a mais antiga: vincula-se à mesma teoria que dá
embasamento à gramática tradicional e vê a linguagem como instrumento de
organização e de expressão do pensamento dentro dos princípios da chamada
lógica formal. Interessa mais a correção do processo de raciocinar do que a
finalidade com que o raciocínio é enunciado. Já a palavra redação expressa a eficiência tecnocrática, cujo objetivo é seguir
modelos de textos. Nessa visão, a linguagem é um meio de comunicação, um código
pelo qual o emissor cifra sua mensagem, que será decifrada pelo receptor.
Finalmente, a produção de texto é a
ação de escrever. Ao invés de compor ou redigir, trata-se de produzir, de
transformar, mudar, mediante a ação humana, o estado da natureza com vistas a
um interesse humano. Em razão disso, a linguagem é vista como forma de ação,
processo de estabelecer vínculos, de criar compromissos entre os interlocutores
(GUEDES, 2009, p. 88-90).
Portanto, a visão de ensino de
produção textual para Guedes (2009) está pautada na interação, visto que
concebe a escrita como uma maneira de interagir na sociedade. Nessa
perspectiva, Kock e Elias (2006) apontam estratégias que devem ser usadas por
quem escreve, como, por exemplo, a “revisão da escrita ao longo de todo o
processo guiada pelo objetivo da produção e pela interação que o escritor
pretende estabelecer com o leitor.” (p. 34). A compreensão de produção
textual como um processo, que tem como característica o exercício de reescrita
constante em diferentes momentos (na revisão feita pelo autor durante o
processo e em versões após a avaliação de interlocutores, por exemplo),
resultou na configuração das qualidades discursivas propostas por Guedes
(2009). A
interpretação dessas qualidades discursivas que toda produção textual deve conter está
descrita na seguinte definição proposta pelo autor:
Qualidades
discursivas são um conjunto de características que determinam a relação que o
texto vai estabelecer com os seus leitores por meio do diálogo que trava não só
diretamente com eles, mas também com os demais textos que o antecederam na
história dessa relação. Todo autor tem de levar em conta que seu leitor foi
leitor de outros textos e que, com essa bagagem de leitura, lê cada novo texto
e o avalia a partir de um conjunto de critérios de valor que foi formado ao
longo, não só de suas leituras, mas também ao longo do que a escola foi lhe
ensinando a respeito do valor dessas leituras. (GUEDES, 2009, p. 94)
Diante disso, o autor nomeia-as de: unidade
temática, objetividade, concretude e questionamento. Para Guedes
(2009), a unidade
temática permite uma chave e uma direção no trabalho de atribuição de
sentido a cada uma das palavras que o leitor lê, assim como a relação que ele
estabelece com e entre elas. Já a objetividade consiste no fornecimento
de todos os dados necessários para que a mensagem seja clara para o leitor.
Segundo o autor, texto objetivo não significa texto curto, frio, mas um texto
capaz de perceber e mostrar os objetos; é necessário dar ao leitor todos os
dados necessários para o entendimento do que se pretende dizer – e o texto
precisa mostrar mais do que meramente dizer. Nesse sentido, é a concretude que
irá garantir que a mensagem seja expressa com precisão, permitindo que o leitor
atribua sentido ao escrito, a partir dos recursos expressivos empregados pelo
escritor. Além disso, é necessário que o escritor envolva seu leitor, mobilize
suas energias intelectuais, convocando-o a participar do texto, através da
última qualidade – o questionamento.
A ação de escrever combina as qualidades discursivas
com alguns aspectos formais da língua, como: organização de parágrafo,
coesão/coerência, morfossintaxe e aspectos semânticos. Além disso, conforme Kock e
Elias (2006) destacam,
o processo de escrita exige do escritor conhecimento da ortografia, da
gramática e do léxico de sua língua – o conhecimento linguístico. Esse
aprendizado é adquirido ao longo da vida através das diversas interações
comunicativas de que o sujeito participa em sociedade e, de forma
sistematizada, na escola. É preciso destacar, também, os conhecimentos
enciclopédico (sobre particularidades diversas do mundo), textual
(sobre os modelos ou gêneros de texto) e interacional (sobre como
configurar a escrita para o leitor reconhecer os objetivos do escritor). Esses
aspectos, reunidos na “bagagem cultural” do escritor – ou no seu conhecimento
prévio – constituem-se em ferramentas importantes para a produção textual e a
eficiência do seu processo interativo.
3 METODOLOGIA:
Uma análise qualitativa e interpretativa
O
corpus desta pesquisa é constituído
de textos escritos durante a cadeira Leitura e Produção Textual (Faculdade de
Letras, UFRGS), conforme instruções da professora ministrante. O corpus, reunido em documentos impressos
incluídos nesta pesquisa, foi composto durante o primeiro semestre letivo do
ano de 2016. Seus autores foram os alunos Aluno 84 (A), Aluno 90 (B) e Aluno 97 (C). As instruções que guiaram
a composição dos textos foram, resumidamente, (I) que se escrevesse uma
primeira versão de cinco tarefas distintas; (II) que, após a entrega e a
devolução desta versão, reescrevesse-se esta procurando atender a pareceres
críticos presenciais, falados em aula pelos alunos e pela professora, e a um
parecer escrito formulado pelas monitoras; e (III) que, por fim, submetesse-se
estas duas versões à professora ministrante, em conjunto com o parecer escrito
e uma ficha de critérios de avaliação a partir da qual seria determinada uma
nota variada de D a A. As temáticas abordadas nas cinco tarefas serão
especificadas na tabela abaixo. Para as primeiras três tarefas, elaboraram-se
diários dialogados registrando observações pessoais a respeito do processo de
escrita ou das aulas ministradas, os quais foram entregados e desenvolvidos
junto com suas respectivas tarefas.
Dos critérios de avaliação supracitados, dois são tomados como ênfase analítica. São eles: a objetividade e a concretude, os quais já foram trabalhados na seção anterior. Eles são considerados a partir de uma ótica de pesquisa qualitativa, a qual descreve e explica os dados trabalhados, sem avaliar quantitativamente. O instrumento de compreensão das duas qualidades discursivas acima é – neste trabalho – a leitura individual dos textos, com atenção especial aos dois critérios acima. Abaixo, segue uma tabela em que estão contidas informações a respeito das tarefas textuais.
Dos critérios de avaliação supracitados, dois são tomados como ênfase analítica. São eles: a objetividade e a concretude, os quais já foram trabalhados na seção anterior. Eles são considerados a partir de uma ótica de pesquisa qualitativa, a qual descreve e explica os dados trabalhados, sem avaliar quantitativamente. O instrumento de compreensão das duas qualidades discursivas acima é – neste trabalho – a leitura individual dos textos, com atenção especial aos dois critérios acima. Abaixo, segue uma tabela em que estão contidas informações a respeito das tarefas textuais.
Tabela 1 – Tarefas textuais
(Nº da
tarefa) Temática
|
(Aluno
autor) Título 1ª versão/Reescrita (se diferir)
|
Observações
remetentes a objetividade e concretude nos pareceres da 1ª versão
(em
paráfrase)
|
(1) Apresentação pessoal
|
(A) Uma infância extraterrestre
(B) Fascista? Mero Ultraman distímico/A raiva, a
casca, o sensível, no plano interno e externo
(C) Quem sou eu. |
(A) “tornar mais objetiva e direta a introdução”
(B) “fornecer informações a respeito de você,
esclarecer metáforas e termos”
(C) “mais informações sobre você para que o leitor a
conheça melhor”
|
(2)
Relato de experiência que gerou um aprendizado
|
(A) Discurso de formatura/A página de agradecimentos
(B) Superego
(C) Meu grande aprendizado |
(A) “dar exemplos e explicitar o aprendizado”
(B) “contextualizar melhor os fatos apresentados,
explicitar o aprendizado”
(C) “detalhar e explicar, prover uma ‘imagem’ à experiência” |
(3)
Descrição de um processo
|
(A) Como entregar um quebra-cabeça (ou como
diagnosticar-se apaixonado)
(B) Vivendo um fim de semana com desequilíbrio
neuroquímico/0
(C) Como tirar um carro de uma garagem./Como minha mãe tira o carro da garagem |
(A) “fornecer imagens mais claras, usar definições
objetivas”
(B) “explicitar e esclarecer o processo, objetivar o
texto, dar informações às metáforas”
(C) “explorar um pouco mais a cena, descrever os objetos para facilitar a percepção do leitor” |
(4)
Memorial de leitura
|
(A) Revivendo as leituras do passado
(B) Comunhão por literatura
(C) Leitura Como Prática Social |
(A) -- (entregou fora do prazo)
(B) “explicar a história do livro e as expressões
empregadas, vincular com a teoria”
(C) “trabalhar e articular o exemplo do livro com a teoria” |
(5)
Artigo de opinião
|
(A) Análise sobre a relação entre o atraso na entrega
e a demanda de trabalhos acadêmicos do curso de Letras da UFRGS
(B) Modernidade, informação e o tempo célere
(C) Geração Y e anacronia tecnológica: fatores e percalços/A sociedade e Tecnologia |
(A) “embasar argumentos, esclarecer expressões”
(B) -- (não recebeu observação negativa)
(C) “ser mais objetiva quanto a descrição do tema, objetivo, argumentos e contra-argumentos” |
4 ANÁLISE: Objetividade e concretude na primeira versão
e reescrita
Nesta seção, provém-se um panorama da qualidade de
objetividade e concretude de cada tarefa e cada autor, notando deficiências,
progressões e trechos exemplares. Cada parágrafo trata de uma tarefa,
comparando suas primeiras versões (V1) e reescrita (RE) entre os autores A, B e
C, nesta ordem.
Em 1A, o autor utilizou uma rememoração da
infância para introduzir a si mesmo. Em tanto V1 e RE, esse processo,
inicialmente descrito abstratamente como “regressão biográfica”, é logo
concretizado com metáforas – é referido como um “abrir de gavetas”, no sentido
de revisitar memórias, cujo desenvolvimento o texto faz com objetos concretos:
grampeadores e papel para significar a experiência de “uma burocracia infantil”
como brincadeira de infância, por exemplo. Esse rememorar eventualmente alcança
o tempo presente, deixando objetivo o propósito de auto-introdução, pois traça
uma narrativa a respeito do narrador. 1B, por sua vez, em sua V1, é marcadamente
vaga em sua terminologia, como quando o autor se declara “(...) um amante de
cianofíceas, diatomáceas e daquelas pobres vítimas transformadas em sushi
(...)”, sem mais exemplos para concretizar suas intenções com tal frase, ou
explicações que a tornariam objetiva, sem necessitar de um conhecimento prévio
de biologia a respeito do qual o público não teria. Há também falta de
informações explícitas que façam o leitor entender o “por que” do texto. Ambas
estas deficiências são mantidas na RE. 1C também é vaga nas suas definições;
por exemplo, ao tentar explicar os motivos que a levaram a escolher a graduação
de Letras, é escrito da mesma forma na V1 e RE: “Talvez, por já ter tido uma
experiência em sala de aula e ter feito a diferença do jeito que eu sempre quis
fazer”. Na V1, não é possível saber qual foi a experiência em sala de aula
que a aluna teve, pois não são oferecidos dados que permitam ao leitor comparar
com o que sabe sobre o tema, prejudicando a objetividade do texto. Na RE, o
parágrafo anterior ao recorte cita que essa experiência foi obtida dando aulas
de inglês. Verifica-se que a aluna usa uma expressão abstrata e genérica (“fazer a diferença”) e não desenvolve com
clareza como seria o jeito que ela “sempre
quis fazer”, como seria essa forma de dar aulas idealizada por ela. O
leitor precisa levantar questões para tentar compreender o texto, pois não há
elementos concretos para avaliar a descrição.
2A, V1, começa-se de uma maneira dispersa,
mencionando diversos termos abstratos – “(...) História da Imprensa à
Fotografia, passando pelas mídias de comunicação (...)” –, mas sem escolher
um ou uma seleta destes para concretizar a partir de exemplos. A compreensão
objetiva do leitor também é prejudicada no sentido de que é difícil,
inicialmente, perceber que problema o autor propõe; há a descrição de uma
trajetória de formação acadêmica geral que só vai se condensar numa dificuldade
de realização de um TCC (o problema propriamente dito do texto) pelo final da
escrita. Na RE, contudo, essa trajetória geral é resumida ao primeiro
parágrafo, com o resto (a maior parte) da escrita tratando da dificuldade com o
TCC, incluindo descrições físicas desse processo, ajudando a tornar o texto
menos abstrato. Na RE, também é mais claro o aprendizado – perceber a
importância da gratidão quanto às pessoas que ajudam – graças a esse foco; na
V1, em comparação, o aprendizado é ambíguo, de pouca objetividade, pois se
divide entre essa gratidão e outra conclusão posterior, de que “o esforço
para cumprir as obrigações acadêmicas e a inquietação pelo saber foram as
ferramentas utilizadas para [concretizar] o desejo por uma vida próspera”.
Em 2B, quando comparada a 1B, há maior preocupação com a contextualização do
texto para que o leitor compreenda objetivamente, tanto na V1 quanto na RE (por
exemplo, quando introduz um conceito freudiano – V1: “O auxílio foi Freud,
mais especificamente a sua hipótese do superego. O superego seria uma
internalização de preceitos morais que (....)”; R: “(...) aprendi sobre
o Inconsciente, sobre a estrutura psíquica humana postulada por Freud, e
entendi de onde esses sentimentos recorrentes (...)”). O autor também
consegue clarificar o problema do texto: na V1, há toda uma cena vagamente
descrita com uma experiência com uma droga desconhecida; na RE, o autor
especifica a droga e que tipo de aprendizagem ela trouxe. Em 2C, a autora narra
situações vivenciadas e características da personalidade de seu irmão autista,
vítima de bullying na escola. Neste relato, a objetividade e concretude são cumpridas.
Por exemplo, um trecho que está presente em ambas versões, e foi pouco alterado
na RE: “Hoje, ele está no 6ª ano e ainda é hostilizado por preferir brincar
com tampinhas de garrafas do que jogar futebol. Por se muito literal e não
entender metáforas. Por ser tão peculiar, gostar e saber de coisas como espécies
de peixes e lutadores de WWE”. O trecho “mostra” as ações do personagem por
meio de exemplos concretos, oferecendo dados necessários para o leitor entender
objetivamente o que a autora quis dizer. A presença de objetividade e
concretude no discurso auxiliam o leitor a construir uma imagem clara do
personagem, bem como justificam o emprego do adjetivo “peculiar” na sua
caracterização.
3A tem objetividade, no sentido de que é
compreensível sua proposta de descrever a influência do apaixonar no
comportamento, em ambas as versões. Porém, os exemplos, nestas, são
demasiadamente subjetivos – por exemplo, na V1: “você sente vergonha em
admitir que o simples fato de comer um hambúrguer desencadeou tal pensamento”.
Esse pensamento é definido previamente como uma lembrança, mas lembrança de
quê? Apenas na RE, que expande sobre os exemplos da V1, é nítido esse
contexto: a lembrança então é definida como “bons momentos na companhia da
pessoa”. Ainda assim, a RE não esclarece tudo: mantém, por exemplo, a frase
“o encontro casual virou encontro de casal”, afirmação nunca
contextualizada: que encontro casual? 3A tem apenas descrições do narrador
saindo sozinho, com o único contato social sendo virtual. 3B apresentou muito
pouco de ambas qualidades, em ambas versões: o propósito da V1, por exemplo,
seria de difícil depreensão se não fosse pelo título “Vivendo um fim de
semana com desequilíbrio neuroquímico”. E, ainda assim, resta
contextualizar: o que é um desequilíbrio neuroquímico? Como muitas outras
metáforas no texto, isso nunca é explicado. Como em 1B, o autor também abusa de
referências de pouco senso comum: fala-se de “Tchernobog” do “Fantasia
da Disney” e do compositor Edvard Grieg, citando a sua música “A Manhã”,
ambos dificilmente conhecidos pelo público-alvo do texto. Na RE, houve pouco
progresso: o autor ainda demonstrou dificuldade em ser objetivo, com, por
exemplo, a metáfora de um “pântano de dor pesada”, subjetiva e abstrata:
como é o pântano? Como é a dor? Em 3C, por sua vez, a narradora
descreve o processo de tirar o carro de uma garagem objetivamente. Um trecho
selecionado da V1 descreve a ação da seguinte forma: “Guie-se através dos
espelhos retrovisores para não bater em paredes, cercas ou seres vivos”. O
trecho similar foi reescrito com mais detalhamento da ação: “Ela se guia
vagarosamente através dos espelhos retrovisores para não raspá-los nas paredes
estreitas e de cimento puro da garagem ou até mesmo bater em gatos, que
eventualmente passam por ali”. Em ambas as versões, o texto oferece os
dados necessários para o leitor entender o que o autor quis dizer: ao tirar o
carro da garagem, em marcha ré, é preciso guiar-se pelos espelhos retrovisores.
Porém, no texto da reescrita o critério da concretude está evidenciado, visto
que a primeira versão não especifica os tipos de obstáculos do percurso. Na RE,
são dados parâmetros para que o leitor possa compreender melhor a função dos
retrovisores naquela cena específica, pois oferece características particulares
do cenário e personagens onde a ação é praticada: as paredes da garagem são
estreitas e os seres vivos são animais de estimação.
4A fala da sua experiência de
leitura na infância, a qual exemplifica com características dos textos lidos,
de caráter jornalístico e objetivo, logo associando isso à sua experiência
posterior de preferir leituras objetivas à literárias, traçando, assim, uma
narrativa causal e compreensível. Também aproveita elementos para associar à
teoria: cita como seu pai lhe trazia periódicos e o associa isso à importância
social do processo de leitura, por exemplo. A V1 e RE diferem pouco, sendo
apenas notável na RE uma remoção de exemplos que não foram trabalhados
intensivamente na V1, contribuindo para com o critério da objetividade. 4B cumpre
os critérios em todas as versões, inclusive atendendo à demanda de que
especificasse uma referência a “Dom Casmurro” de Machado de Assis: na
RE, clarifica essa relação entre o personagem machadiano e o livro que leu:
neste, também há um “narrador desconfiável” cuja história relatada pode não ser
verdadeira, constatação desenvolvida ao notar que este se contradiz em seu
relato. 4C cita objetiva e ilustradamente o exemplo de um livro que foi
decisivo para sua formação como leitora. Por exemplo, um trecho presente na V1
e RE: “O livro era ‘Mar Morto’, de Jorge Amado; ele trazia a trajetória dos
homens do mar, velejadores e marinheiros da Bahia. O livro me iniciava em um
tema que já era de meu interesse, era um assunto que despertava a minha
curiosidade, em função do meu profundo interesse por história, de ouvir
histórias sobre os imperadores romanos, sobre as trajetórias dos povos egípcios”.
Quando a autora descreve que aquilo lhe lembrava dos egípcios ou dos romanos,
está atribuindo mais concretude ao texto, na medida em que oferece dados para o
leitor avaliar suas preferências de leitura – as civilizações históricas
citadas são elementos concretos que permitem ao leitor apreender sobre o papel
da leitura na vida da narradora. Dessa forma, o critério da concretude se
mostra complementar à objetividade, pois a primeira qualidade discursiva está
presente nos exemplos, que, por sua vez, deixam claro o ponto de vista da
autora sobre o tema, contribuindo para tornar o texto objetivo.
5A
trata do estresse de acadêmicos devido à carga horária curricular,
fundamentando seus argumentos inteligivelmente. A maioria destes, porém, embora
claramente enunciados, carecem de concretude. Por exemplo, cita uma frase de
senso comum de Albert Einstein ao justificar um contra-argumento de que as
dificuldades de horário são apenas uma questão de organização: por mais notório
que Einstein tenha sido, uma frase não se equipara a uma pesquisa científica
como defesa de afirmação. Na RE, não chega a substanciar esse argumento; contudo,
referencia uma pesquisa adicional a um trecho que já estava fundamentado em V1,
reforçando a concretude deste outro argumento. 5B não demonstra tal ausência de
referências: ao argumentar que a tecnologia da modernidade acelera a percepção
do tempo de seus sujeitos, associa essa constatação uma tese de PhD que a
suporta, citando, inicialmente, resultados experimentais favoráveis contidos
nesta, os quais são detalhados com teorias psicológicas mais adiante, também
fundamentadas a partir desta tese. Sua única deficiência é no contra-argumento:
constata que seria de difícil fundamentação, o que tenta remediar ao sugerir a
pesquisa sobre um conceito que sequer explica. Em 5C, observa-se como a
manutenção do texto da primeira versão, sem sofrer alterações na versão
reescrita, impediu o aprimoramento das qualidades discursivas. A autora, ao
tratar sobre as consequências do acesso à internet na vida dos usuários, mantém
o trecho escrito da mesma forma em ambas as versões: “É fato que o controle que se tem atualmente sobre as informações é
vago, uma forma de não apenas conscientizar seu uso adequado, mas também
interferir no ciclo vicioso que há no convívio entre jovem e tecnologia a
partir do diálogo e autonomia dos pais”. Percebe-se que a temática não está
claramente desenvolvida, o que levanta questões durante a leitura: Quem tem o
controle vago dessas informações? De quais tipos de informações está se
falando? Os pais devem dialogar com os jovens com autonomia (ou seria
autoridade)? Dessa forma, o leitor tem prejuízo na imediata compreensão,
precisando reler para tentar apreender o conteúdo do texto, o que significa
ausência de objetividade – não são oferecidos todos os dados necessários para o
leitor entender o que o autor quis dizer – e de concretude – não são usadas
palavras ou termos que designam conjuntos definidos de ideias.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise dos trechos
selecionados, foi possível estabelecer relações entre a qualidade discursiva da
objetividade e da concretude. Constatou-se que um mesmo recorte de texto pode
ser objetivo mas sem concretude (cf. 5A), mas na maioria dos casos essas
qualidades foram complementares para estabelecer o cumprimento das propostas. A
compreensão dessas qualidades do texto como critérios de análise foi
fundamental para se desenvolver uma consciência crítica sobre o corpus do estudo. Apesar das cinco
tarefas possuírem modelos textuais de escrita diferentes, em todas foi possível
executar a análise proposta, ou parcialmente, em alguns raros casos como 3B.
A
análise, no geral, mostra uma evolução, um aprimoramento entre a primeira
versão e a reescrita das tarefas, em relação às duas qualidades discursivas
verificadas. Há uma progressão clara entre as primeiras tarefas e as últimas,
no sentido de que há maior cumprimento das qualidades gradativamente. As
deficiências de objetividade e concretude não desaparecem, mas a ocorrência
diminuiu. Os resultados obtidos confirmam a importância do exercício da
reescrita como mais uma ferramenta disponível – e necessária – para a efetiva
interação entre escritor e leitor no processo de produção textual.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
GUEDES,
Paulo Coimbra. Da redação à produção
textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
KOCK, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda
Maria. Ler e compreender – os sentidos
do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
PLATÃO, Francisco; FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. 5ª
ed. São Paulo: Ática, 2006.
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