Aluno 84
1 Versão
O memorial é um gênero
textual que registra trajetórias de vida. Vasculhando as gavetas da memória,
recordei algumas experiências de leitura ocorridas durante a infância e
adolescência. A primeira lembrança está ancorada em jornais e revistas que meu
pai trazia do trabalho. Motorista de uma instituição de ensino, ele tinha
acesso a publicações diversas, inclusive a periódicos diários e semanais. No
final do dia, ou quando os impressos estavam prestes a ser descartados no lixo,
ele os levava para casa. Não me lembro de ler histórias infantis, mas páginas
desses textos jornalísticos, e nem me importava com o atraso das informações. Meu
pai, talvez até de uma maneira inconsciente, estava contribuindo para eu
desenvolver a leitura como uma habilidade presente na construção do
conhecimento. Sobre a responsabilidade dos familiares em estimular a prática da
leitura, Rottava (2000) afirma que:
[...]
a família precisa ter presente a ideia de que a leitura perpassa todas as ações
e tarefas realizadas dentro de casa, tais como ler o rótulo de um alimento, ler
um manual de instrução, uma revista ou jornal, dentre outras, bem como
incentivar à prática constante da escrita. (p. 13)
Histórias verídicas contadas
através das notícias e entrevistas mesclavam informação e entretenimento em
textos relativamente curtos e ilustrados. Essa forma de exercitar a leitura me
atraía pois permitia saber mais sobre o mundo real na minha própria casa. Eu
viajava pelas editorias sem saber direito o que cada uma significava. O que
mais me chamava a atenção era o “segundo caderno”, a parte cultural do jornal.
Lia as tirinhas e horóscopo, que estavam diagramados na mesma página. Na mesma
seção, havia o resumo das novelas e a programação das emissoras de televisão,
que eu lia com uma curiosidade memorável. Talvez venha dessa prática a
preferência pela escrita em terceira pessoa, e uma certa dificuldade em escrever
minhas ações na primeira conjugação. Eu estava treinado para decodificar o
material escrito, mas o hábito de ler jornais e revistas foi o grande responsável
por desenvolver minha habilidade de letramento, considerando a conceituação
proposta por Rottava (2000) para diferenciar um ser alfabetizado de um ser
letrado:
Alfabetização
significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de
quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de
leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas
habilidades) as práticas sociais que usam a escrita. (p. 12)
A escola foi a responsável
por me alfabetizar, orientar para o domínio da tecnologia da escrita. Porém,
foi em casa que eu exercitei as práticas sociais de leitura e de escrita,
incorporando de maneira funcional as capacidades que o fato de aprender a ler e
escrever me propiciaram. No contexto familiar em que eu estava inserido,
desenvolvi o hábito, as habilidades e até mesmo o prazer de leitura e de
escrita do gênero informativo.
O papel da escola foi memorável
para eu aprimorar a capacidade de ler através da oratória e, por consequência,
desenvolver a habilidade de escrever, considerando o caráter indissociável da
leitura e da escrita para produzir conhecimentos (ROTTAVA, 2000). Lembro-me de
uma ocasião, na 2ª série, em que fui escolhido pela professora para representar
a turma e ler uma poesia em homenagem às mães na igreja do bairro. Apesar do
nervosismo, devo ter me saído bem, pois o padre pediu para eu repetir a leitura
no final das outras apresentações dos alunos. A escola pública onde eu estudava
também organizava todos os anos a Feira de Ciências. Sem ideias para
experiências científicas, eu escrevi uma peça de teatro de fantoches. O tema
era erosão e preservação ambiental. Nas palavras do texto original, os diálogos
explicavam, basicamente, que não deveríamos jogar lixo nas ruas. A estratégia
foi usar a escrita e a encenação para tratar de um assunto estudado nas aulas
de Ciências e, dessa forma, habilitar a peça para ser inserida no evento
científico. O trabalho da 4ª série rendeu ao grupo de atores e ao dramaturgo
que vos fala a medalha de 1º lugar na competição de “experiências”. Anos
depois, na 8ª série, apresentei o I Sarau Literário da escola, durante a Feira
de Comunicação. A iniciativa da professora de Português era estimular a leitura
dos alunos. E, de fato, houve grande participação das turmas. Não apresentei
nenhuma poesia, mas a oralidade da leitura, mais uma vez, estava presente na
função de “mestre de cerimônias” do evento, anunciando os alunos e os poemas que
seriam declamados. Dessa forma, tive o contato inicial com diversas poesias,
como a famosa Canção do Exílio, de Gonçalves
Dias, apresentada por uma colega.
Recapitulando memórias dos
anos de escola, não desenvolvi o hábito de ler livros de ficção. As lembranças se
restringem a livros infanto-juvenis da série Vaga-lume, como a Serra dos Dois Meninos e A Ilha Perdida. No ensino médio, a
ênfase na oralidade se repetiu. As leituras obrigatórias da disciplina de
Literatura, quando lidas, eram mais por dever do que prazer. Eu gostava mais de
elaborar slides e apresentar os trabalhos em sala de aula do que do processo de
leituras necessário para a pesquisa. Essas vagas memórias de livros de ficção
ilustram o sentido da leitura na minha juventude, voltado mais à apresentação
verbal ou leitura oral em sala de aula. Entretanto, tendo em vista que “tanto a
leitura quanto a escrita podem ser consideradas atividades de construção dos
sentidos de um discurso” (ROTTAVA, 1998, p. 67), ler e escrever – sobretudo
pela motivação da expressão oral – foram atividades que pesaram em minha
bagagem cultural e alcançaram um de seus propósitos: a construção de
aprendizagem.
Referências
ROTTAVA, Lucia. A
importância da leitura na construção do conhecimento. Revista Espaços da
Escola, Unijuí, Ijuí/RS, ano 9,
n. 35, p. 11-16, jan.-mar. 2000.
________. A
leitura e a escrita na pesquisa e no ensino. Revista Espaços da Escola, Unijuí, Ijuí/RS, ano 4, n. 27, p.
61-68, jan.-mar. 1998.
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