Aluno 95
Aluno 110
Resumo: Objetiva-se, por meio da seguinte pesquisa qualitativa, analisar a evolução (ou a falta) de clareza e compreensão nos textos de alunos do primeiro semestre da faculdade de Letras na cadeira de Leitura e Produção Textual de 2016. Através da produção textual de cinco gêneros distintos e suas respectivas reescritas, analisa-se o papel das qualidades discursivas trazidas por Guedes (2004), percebendo-se que o uso delas pode transformar um texto subjetivo em universal, isto é, capaz de ser compreendido por qualquer leitor. Os resultados mostram que as reescritas abandonam passagens abstratas e demasiadamente pessoais quando organizadas de forma a valorizar a unidade temática, assim dando possibilidade de adequação também à concretude e objetividade, que permitem a percepção detalhada e compreensível de cenas e/ou fatos que somente o aluno escritor presenciou.
Palavras-chave: Leitura. Compreensão. Qualidades discursivas. Unidade Temática. Produção textual. Escrita.
INTRODUÇÃO
Neste artigo buscou-se analisar os textos produzidos pelos alunos do curso de Leitura e Produção Textual e avaliar seu desempenho e evolução na reescrita das atividades propostas. A partir de uma análise qualitativa, a qual buscou observar a ocorrência ou não das qualidades discursivas, observa-se a evolução da escrita dos textos analisados, de forma que estes se tornem mais coesos, claros e compreensíveis a todo e qualquer leitor.
Outrossim, utilizando-se das qualidades discursivas ensinadas por Guedes (2004), a saber unidade temática, concretude, objetividade, objetiva-se analisar se alguma delas é mais importante que outras ou se elas se mostram em algum grau crescente de importância. Tal fato é de útil constatação porque, se assim for comprovado, permitirá uma melhor qualidade de ensino para a produção textual, bem como atesta se o método utilizado durante a disciplina é ideal e por qual motivo.
Para aqueles que desejam aprimorar suas técnicas de escrita, a leitura desse material é de suma importância, pois uma característica de um texto pode ser a chave para a implementação de qualidade das demais. Para que tal característica discursiva, bem como as demais, fique clara, este artigo organiza-se em sete seções: introdução, revisão bibliográfica, metodologia, apresentação e análise de dados, considerações finais, referências bibliográficas e anexos.
Na presente seção, apresenta-se o trabalho de forma geral, com seus objetivos e características principais; na segunda, faz-se uma revisão de outros trabalhos que tratam de leitura e produção textual, analisando aspectos fundamentais e necessários das duas práticas; na terceira, explica-se detalhadamente como desenvolveu-se o projeto, os processos de escrita e reescrita e a avaliação dos mesmos; na quarta seção, faz-se uma detalhada comparação entre as primeiras versões e as reescritas, bem como entre os textos dos alunos 1 e 2, procurando analisar as qualidades discursivas presentes ou não e como isso influencia na clareza do escrito; a quinta seção avalia a importância do conhecimento a respeito dos aspectos trazidos pelos teóricos, retomando como eles podem influenciar na leitura e escrita textual; a sexta mostra a fonte dos trabalhos consultados para o desenvolvimento deste; e, finalmente, a última seção traz os portfólios de todas as propostas desenvolvidas ao longo do semestre, isto é, com todos os dados passados para a professora e suas respectivas correções.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Um dos objetivos do presente artigo é verificar a tática de ensino da produção textual a partir da reflexão sobre o próprio texto e sobre o processo de construção de sentido desse texto. Para isso, como se verá adiante, será realizada análise dos textos dos discentes. Antes, portanto, faz-se necessário conceituar o que é texto. Texto é toda manifestação da linguagem, podendo ser verbal, não verbal ou ainda multimodal (verbal e não vergal, como o cinema, por exemplo). Também é todo um organizado de coerência e sentido, ou seja, um conjunto de partes solidárias, nas quais o sentido de uma depende das outras (PLATÃO e FIORIN, 2006).
Composição, redação e produção de texto são expressões sinônimas, isto é, designam o mesmo fenômeno, a saber, a ação de escrever textos, vinculando-se, porém, a diferentes teorias. Os textos dos discentes analisados nesta artigo referem-se à teoria da produção de texto: a linguagem é uma forma de ação, um processo de estabelecer vínculos, de criar compromissos entre interlocutores. Pressupõe leitores que vão dialogar com o texto produzido: concordar e aprofundar ou discordar e argumentar (GUEDES, 2004).
A teoria da produção textual vai ao encontro do que menciona BEAUGRANDE, 1997, in KOCH & ELIAS, 2009:
“Aquele que escreve como aquele para quem se escreve são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que - dialogicamente - se constroem e são construídos no texto, este considerado um evento comunicativo para o qual concorrem aspectos línguísticos, cognitivos, sociais e interacionais. (BEAUGRANDE, 1997, in KOCH & ELIAS, 2009).
Além disso, há vários tipos de textos: Guedes (2004) desenvolve, ao longo de seu manual de redação, explicações a respeito das qualidades discursivas que um texto deve possuir, sem ditá-lo ou moldá-lo, mas somente guiando-o para que se torne o mais compreensível possível para um leitor. A partir disso, estabelece a noção de unidade temática, que é “a proposição e a tentativa de delimitação de um tema e a identificação de suas partes componentes e das relações que essas partes mantêm entre si que torna interessante tanto uma conversa quanto um texto” (GUEDES, 2004, p. 92), isto é, tratar exclusivamente de um assunto ao longo do texto e desenvolvê-lo de forma a torná-lo coeso e intrigante através da ideia de peculiaridade.
O interesse do leitor, no entanto, só surge quando há o que o jornalismo chama de “gancho”, ou seja, “uma pergunta que, mesmo que não chegue a formular, o leitor tem na cabeça quando começa a ler o texto” (GUEDES, 2004, p. 93) e que prende a atenção na leitura através do questionamento.
Ademais, há também a concretude, que Guedes define como a utilização de palavras e expressões que possuem um significado compartilhado por todos, isto é, generalidades, em oposição a abstrações pessoais e subjetivas (GUEDES, 2004).
Nessa análise, o último ponto essencial trazido por Guedes (2004) é a objetividade, que é a capacidade do escritor de perceber e oferecer os dados que o leitor necessita para compreender o texto em sua totalidade, com descrições de situações, pensamentos ou qualquer outro ponto que possa ser pessoal e subjetivo demais (GUEDES, 2004).
Já no que se refere às diferentes concepções de leitura, vamos nos basear na perspectiva interativa. Segundo ROTTAVA (1998):
“A construção dos sentidos é resultante da interação do leitor com os elementos linguísticos, textuais e discursivos do texto, mais as inferências, estratégias e o conhecimento anterior - das experiências vividas e das leituras de outros textos. A construção de sentidos é um processo dinâmico, pois os leitores podem fazer diferentes leituras sempre que estiverem imbuídos de um novo propósito, ou quando as leituras forem discutidas com diferentes interlocutores.” (ROTTAVA, Lucia, 1998, página 62).
Em outras palavras, se a leitura for discutida com diferentes interlocutores, o próprio autor do texto pode interpretá-lo de forma diferente. Assim, após esse novo viés do texto, reescrevê-lo e adaptá-lo para que fique mais compreensível a todos.
METODOLOGIA
A referente pesquisa classifica-se como qualitativa, cuja abordagem na linguística “considera a presença ou ausência de uma dada característica de conteúdo ou conjunto de características num determinado fragmento da mensagem” (CAREGNATO, 2014). No que diz respeito à presente pesquisa, busca-se identificar se os textos analisados possuem as qualidades discursivas estudadas, com enfoque à unidade temática, concretude e objetividade, e como essas características trabalham a favor da compreensão textual. Para tal, considerou-se o texto como objeto escrito, apesar de suas também presentes características orais, através do processo de escrita e leitura no ambiente acadêmico na cadeira de Leitura e Produção Textual no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com início em março de 2016, os estudantes do primeiro semestre do curso receberam a tarefa de desenvolver cinco produções textuais de gêneros distintos ao longo de quatro meses (março até junho), sendo eles uma apresentação pessoal (Proposta 1), uma experiência marcante e/ou que resultou em um aprendizado (P2), a descrição de um processo (P3), um memorial de leitura (P4) e um artigo de opinião (P5).
A organização do processo de escrita das tarefas deu-se em cinco etapas. Inicialmente, os alunos, sem ter acesso aos textos teóricos referentes à respectiva proposta, desenvolviam sua primeira versão (V1) e entregavam- na à professora. Os relatos dessa primeira escrita poderiam ser registrados no diário dialogado, espaço no qual o aluno era livre para dar suas visões acerca do processo de escrita, bem como analisá-lo e comentá-lo. O diário era usado ao longo de toda a produção da proposta, podendo ser preenchido ao passo que o aluno a desenvolvia ou somente quando ela era concluída, visto que era entregue junto com o resto do portfólio para a professora, que o comentava e respondia possíveis dúvidas.
Após a V1 ser entregue, o aluno tinha acesso ao apoio teórico referente à proposta, que ditava as qualidades necessárias para que um texto se enquadrasse no gênero solicitado. Assim sendo, acontecia a leitura das produções textuais em sala de aula, seguida por comentários dos colegas a respeito das qualidades discursivas estudadas que eram presentes ou não no texto. Ressalta-se que o aluno escritor não podia responder aos comentários dos colegas ou trazer novos tópicos, da mesma forma como a professora também não envolvia-se no processo de análise e comentário, salvo momentos em que questões pessoais e fora do tema eram trazidas. Através dessa prática, os aspectos formais eram analisados pelos próprios alunos, auxiliando o aluno escritor a desenvolver a próxima versão do texto, a reescrita (RE), da mesma forma como fazia os demais alunos terem maior contato com a leitura e suas diversas formas de compreensão e análise, ampliando assim seu contato com a linguística.
Logo após essa leitura comentada em sala de aula, era disponibilizado aos alunos também um parecer desenvolvido pela professora e suas monitoras, no qual o aluno tinha uma análise sobre seu texto considerando as qualidades discursivas necessárias para a proposta e a qualidade do texto em um todo, levando-se em consideração aspectos sintáticos/lexicais e morfológicos. Ademais, nesse momento o aluno também tinha acesso aos critérios de avaliação da proposta, que consistiam em aspectos textuais trabalhados que deveriam ser atingidos na reescrita, como por exemplo a apresentação de “dados que permitem a percepção detalhada de objetos, fatos, ações”, como foi pedido na proposta 2, dentro do tópico de objetividade. Atenta-se também para o fato da avaliação observar a evolução da V1 para a RE, sendo a V1 não considerada separadamente pois o aluno não possuía o conhecimento teórico necessário.
Uma vez que o aluno possuía todos esses materiais para o auxiliarem numa nova versão de seu texto, ele desenvolvia sua RE, levando como base sua V1, isto é, o texto deveria seguir os mesmos aspectos desenvolvidos na sua primeira escrita para poder haver a comparação e para a possível evolução ser analisada.
Sendo assim, eram entregues um portfólio com a V1, o parecer da professora, o diário dialogado, a RE e os critérios de avaliação em cada uma das cinco tarefas, que eram devolvidos aos alunos quando corrigidos.
Após a entrega de todas as tarefas, foi desenvolvido um quadro comparativo entre elas, analisando a presença ou não de três qualidades discursivas, sendo elas a unidade temática, concretude e objetividade. O quadro segue abaixo.
Unidade Temática
|
Concretude
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Objetividade
| |
A1 - P1 - V1
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Não ocorre
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Não Ocorre
|
Ocorre em parte
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A2 - P1 - V1
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Não ocorre
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Não Ocorre
|
Não ocorre
|
A1 - P1 - V2
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Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
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A2 - P1 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
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A1 - P2 - V1
|
Não Ocorre
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Ocorre em parte
|
Ocorre em parte
|
A2 - P2 - V1
|
Ocorre
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Ocorre em parte
|
Ocorre em parte
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A1 - P2 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
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A2 - P2 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
|
A1 - P3 - V1
|
Ocorre
|
Não Ocorre
|
Não Ocorre
|
A2 - P3 - V1
|
Ocorre
|
Não Ocorre
|
Não Ocorre
|
A1 - P3 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
|
A2 - P3 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
|
A1 - P4 - V1
|
Ocorre em parte
|
Ocorre em parte
|
Não Ocorre
|
A2 - P4 - V1
|
Ocorre
|
Ocorre em parte
|
Não Ocorre
|
A1 - P4 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre em parte
|
Ocorre em parte
|
A2 - P4 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
|
A1 - P5 - V1
|
Ocorre
|
Não Ocorre
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Ocorre em parte
|
A2 - P5 - V1
|
Ocorre
|
Ocorre em parte
|
Ocorre em parte
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A1 - P5 - V2
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Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
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A2 - P5 - V2
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Ocorre
|
Legenda
A1 - Aluno 1 - Aluno 95 A2 - Aluno 2 - Aluno 110
V1 - 1ª Versão V2 - 2ª Versão ou Reescrita
Pn - Proposta n
Ocorre - a qualidade discursiva mostra-se presente no texto.
Não ocorre - a qualidade discursiva não se mostra presente no texto.
Ocorre em parte - a qualidade discursiva não fica totalmente clara no texto, podendo melhorar para se relacionar com as demais qualidades.
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS
Ao compararmos as primeiras versões dos dois alunos na primeira proposta, percebemos que nenhuma das duas apresenta uma unidade temática ou peculiaridade desenvolvida, visto que abordam diversos temas de forma superficial, sem focar-se em nenhum. No caso do texto de A1 vê-se isso de maneira mais intensa, uma vez que informações que não possuem forte relação são postas uma após a outra, deixando o texto com várias temáticas, sem sua unidade, como no trecho “(...) tenho 28 anos, moro em Canoas. Minhas atividades preferidas são jogar videogame e ler. Também me interesso em fazer atividades físicas, ir no cinema, tomar chimarrão com os amigos assistindo ao por do sol, entre outras.” (A1, P1, V1)
No caso do texto de A2, entretanto, o ponto que mais dificulta a leitura é a falta de concretude, visto que muitos trechos são demasiadamente subjetivos e escassos de explicações que os tornem mais claros. Vê-se tal aspecto no trecho “Existe em mim certa veia filosófica, ainda que pouco desenvolvida, e uma veia artística, essa bem grande, necessitada de atenção e por vezes má compreendida por mim mesma e pelo mundo.” (A2, P1, V1)
Percebe-se como os textos mostram dois extremos na objetividade: enquanto o de A1 usa-a em excesso, caracterizando-se com a falta de sensações e visões pessoais, o de A2 é demasiado abstrato, isto é, necessita de mais passagens objetivas.
No que se refere às reescritas, ambas mostram grande evolução quando comparadas à primeira versão. Ao aprofundarem assuntos já tratados na V1, definindo unidade temática — a objetividade e a escrita, respectivamente —, os textos de A1 e A2 traçam somente uma linha, essa devidamente desenvolvida, sobre um aspecto específico da personalidade de cada um, proporcionando ao leitor um conhecimento mais aprofundado e significativo.
Dá-se os seguintes exemplos no texto de A1:
Sou objetivo e gosto de ir direto ao ponto. Por mim, minha apresentação terminaria aqui. Talvez, isso venha do meu grande interesse por disciplinas das exatas, como física, química e matemática. (...) Mesmo dentro do curso de direito no qual me formei, relacionado a humanas, sempre escrevi textos pragmáticos. Ainda hoje, no meu trabalho, quanto mais direto e objetivo são as peças jurídicas que escrevo, mais claras elas ficam. (A1, P1, RE)
Enquanto vemos esses aspectos no texto de A2 em:
No início, como eu gostava muito de histórias que contavam brevemente a trajetória de um personagem peculiar (como uma tartaruga que resolve virar uma jacaré) e eram recheadas de figuras, eu copiava os desenhos para essa nova folha e inventava uma história que neles se encaixassem. Essas releituras, no entanto, nunca iam a lugar nenhum: meus pais e minha avó, apesar de acharem tais atos "bonitinhos", não tinham muito o que fazer. Afinal, eu era só uma criança fazendo alguns desenhos. (A2, P1, RE)
Na segunda proposta, os textos dos dois alunos têm um “gancho” bastante peculiar — a casa misteriosa, no caso de A2, e o medo de voar, de A1 — que interessam o leitor. A partir da conexão inicial, são desenvolvidas narrativas com concretude suficiente para que seja criada na mente daquele que lê certa imagem do respectivo acontecimento, embora haja aspectos em questão de objetividade que só serão melhores explorados na reescrita.
No texto de A2, a personagem Gabriela é pouco personificada, já que não há informações suficientes capaz de caracterizá-la física ou psicologicamente, da mesma forma como algumas cenas, como a do achado do livro, não fica tão clara para o leitor devido à falta de explicações espaciais e situacionais mais detalhadas.
Eu lembro de ter ficado um instante quieta, analisando se não era uma alucinação minha. Realmente havia algo lá? Mas eu percebi que o caminhão que juntava as coisas do container estava ligando novamente, ou seja, logo recolheria tudo, inclusive aquele livro. (A2, P2, V1)
O mesmo acontece com a narrativa de A1, que não situa completamente o leitor no tempo-espaço do acontecimento, embora fique claro que a situação se passa em um avião, ou seja, não há muitas explicações ou detalhes que auxiliem aquele que lê a criar a imagem do ambiente.
Outro ponto a ser levantado é a tentativa de adequação à proposta de A1, que acabou configurando-se na fuga à unidade temática. Ao tratar de um acontecimento marcante, o texto cumpre a ideia até o quarto parágrafo, mas na parte final, quando há a tentativa de explicar um aprendizado tirado da situação, o enfoque perde-se, bem como a unidade temática.
Apesar do ocorrido, sucedram-se os melhores dias da vida de Eduardo. Conheceu lugares novos, pessoas diferentes e aprendeu outras culturas. Tendo em vista que nunca tinha viajado, ele descobriu que tinha medo de voar, mas também tinha medo de permitir-se ser feliz, pois viajar é uma forma de se encontrar. (A1, P2, V1)
Tal ponto soluciona-se na reescrita, uma vez que a conclusão (ou aprendizado) fica implícita ao longo dos acontecimentos, sem necessidade do autor de explicá-la num parágrafo à parte. O que auxilia o leitor a chegar nessa conclusão é sua melhor situação, agora com mais detalhes do motivo que levam o personagem a viajar de avião, bem como do próprio meio de transporte, dos acontecimentos e das sensações. Vê isso em:
A luz forte e cegante do sol refletia com força nas nuvens cor de neve, que agora deslizavam abaixo da aeronave. Os comissários de bordo em trajes azuis, sempre solícitos ao atender os passageiros, fizeram Eduardo esquecer que estava dentro de um avião. O clima de animação dos demais passageiros também ajudou, pois todos estavam ansiosos para chegar o quanto antes no destino: San Diego, Califórnia. (A1, P2, RE)
O mesmo acontece com a reescrita de A2, que descreve melhor o ambiente e a situação da personagem com passagens mais objetivas e detalhadas. É também relevante perceber como a relação entre a casa e o caderno foi reorganizada, visto que na V1 o local, sendo o foco da narrativa por tantos parágrafos, perdia sua importância quando encontrado o caderno. Na reescrita, o caderno surge também como uma parte da casa que será levada junto da personagem e que relembra sua infância, tornando a narrativa mais circular, uma vez que os fatos trazidos no início são retomados no fim, como pode ser visto em “O lar assombrado não mais existia, mas havia agora comigo uma lembrança dele e, consequentemente, uma lembrança do meu eu do passado. Eu me uni a mim mesma naquele momento” (A2, P2, RE). Além disso, a personagem Gabriela, agora com mais características e concretude, também reaparece no final.
Na primeira versão da terceira proposta, vê-se que nenhum dos textos conseguiu alcançar o nível ideal de concretude, o que prejudicou a objetividade. No caso da descrição de A1, a falta de explicações acerca de ações aparentemente simples impossibilitam o entendimento de um leitor que nunca tenha tomado o chimarrão antes, que seria justamente seu público alvo. Vê-se isso em “Após, é preciso manter a cuia ereta e encher de erva até a boca” e em “Muitas pessoas colocam a camisinha antes de introduzir, já que dizem que ela impede problemas futuros, evitando que a bomba entupa” (A1, P3, V1). O próprio palavreado, como camisinha e erva, pode ser desconhecido, mas a primeira versão não atenta para explicá-lo.
A respeito da descrição de A2, acontece o contrário: a quantidade excessiva de informações já conhecidas pelo leitor não cumpre seu papel de explicar o processo, aproximando-o de uma lista de palavras e tirando dele a lógica e coesão textual. Percebe-se, portanto, que ao abusar da concretude, também não foi alcançada a objetividade, visto que foram oferecidos ao leitor dados irrelevantes e que podem prejudicar a fluidez do texto.
Levanta, agora, também a mão direita. Ela vai em direção à caixa, segura sua embalagem — a parte surpreendente que diz que ali dentro há 130 fósforos —, seu dedão apoiando-se na extremidade direita e todos os outros quatro dedos fazendo o mesmo do outro lado (...) (A2, P3, V1)
Além disso, houve também um problema de unidade temática na primeira versão, uma vez que o enfoque do texto é no ato de acender um fósforo, enquanto que o título — Transformando o rosa em cinza — atenta para o derretimento da vela, ou seja, exprime de forma errônea seu conteúdo.
Essa questão é resolvida na reescrita, que trata exclusivamente do processo do fósforo sendo aceso e, consequentemente, produzindo fogo. Nessa segunda versão também são resolvidas maiores questões de concretude, uma vez que explicações demasiadamente detalhadas são substituídas por frases mais sucintas e objetivas. Em comparação ao texto citado anteriormente, agora há “Você leva sua mão esquerda até a embalagem e encaixa-a entre seu dedão e seu dedo indicador” (A2, P3, RE).
Na reescrita de A1, também são melhores exploradas as questões de concretude, como se vê na passagem “introduzo a bomba de ladinho até o fundo”, que é substituída por “introduzo a bomba até o fundo da cuia, de forma que ela desça raspando por uma de suas “paredes””, visivelmente mais explicativa e objetiva.
Analisa-se na primeira versão da quarta proposta alguns pontos entre os textos dos dois alunos: o memorial de A2 possui informações teóricas suficientes e explicações acerca dos textos apresentados pela professora, enquanto que o de A1 trata de termos usados nas referências sem explicá-los, o que pode prejudicar a leitura de um leitor que tem seu primeiro contato com o assunto através do memorial e não das pesquisas teóricas, como se vê em “Faltava-me conhecimento línguístico para conceituar as palavras, muitas delas, desconhecidas” (A1, P4, V1).
No entanto, o memorial de A1 traz explicações acerca do livro sobre o qual analisa a leitura, exemplificando as análises com passagens da própria obra e de ideias que elas lhe causaram na primeira e segunda leitura, ao passo que o texto de A2 não trata do livro sobre o qual analisa a leitura, seja com trechos ou explicações, ou seja, o leitor só pode ter total entendimento do memorial se já leu Memórias Póstumas de Brás Cubas. São necessários conhecimentos a respeito da obra no trecho “Assim, certos aspectos que o autor criticava na obra foram incompreendidos nessa primeira leitura devido aos conhecimentos enciclopédicos demasiadamente básicos sobre o assunto” (A2, P4, V1).
Em ambos os casos, o que percebemos é a falta de objetividade, pois os alunos não passam para o leitor todas as informações necessárias, no caso de A2 a respeito do livro discutido e no de A1 sobre os teóricos e suas visões e termos. Tal problema é reduzido visivelmente nas reescritas, as quais trazem as respectivas informações que faltaram na primeira versão de forma concreta, principalmente citações das obras (teóricas e literárias), o que oferece ao leitor os conhecimentos que o próprio aluno tinha ao desenvolver o memorial, tornando-o mais claro. No texto de A1, têm-se “De acordo com Ângela Kleiman, conhecimento prévio linguístico “abrange desde o conhecimento sobre como pronunciar português, passando pelo conhecimento de vocabulário” (A1, P4, RE), enquanto que o de A2 traz a passagem “Como exemplo, há a personagem Marcela, primeiro amor de Brás Cubas, que é descrita como "amiga de dinheiro e de rapazes"” (A2, P4, RE).
Na quinta e última tarefa, pode-se ver novamente uma oposição entre os textos dos dois alunos: o de A1 trabalha bastante com a opinião pessoal, usando a teoria de Einstein como argumento de autoridade, mas não trazendo dados concretos, somente sua opinião a respeito da linguagem fática, como se vê em:
Exemplos para esclarecer melhor essa função: contar anedotas que todos conhecem em festas, a fim de quebrar o silêncio constrangedor; perguntas retóricas de “tudo bem?”; e comentários sobre o clima. Assim, os estudantes falam dos problemas de tempo mais como uma forma de aumentar os laços, não como se isso fosse efetivamente um problema sério (A1, P5, V1).
O texto de A2, por outro lado, traz ambos os argumentos, mas há falta da opinião, que fica somente implícita muitas vezes, como em “(...) que ocasiona dores musculares em 86% deles (...), ou seja, as consequências deixam de ser somente emocionais e tornam-se também físicas” (A2, P5, V1).
Vê-se, portanto, um escape à objetividade em ambos os textos: ao argumentar somente com a posição pessoal falta-se a base teórica capaz de tornar o texto mais fluído e claro, e ao não posicionar-se claramente, com a omissão da opinião da autora, a fluidez do artigo pode ser perdida também, tornando os dados difíceis de serem analisados e compreendidos somente através de números, sem a devida explicação vista através do posicionamento mais direto.
Nas reescritas, a objetividade foi melhor trabalhada. No texto de A2 há o maior desenvolvimento de opiniões e os dados são melhores analisados e preenchidos por explicações, tornando claro o objetivo deles no texto. O trecho citado anteriormente é complementado por “(...) da mesma forma como não surpreende que 86% deles reclame de dores musculares, já que a tensão os acompanha da manhã até a noite” (A2, P5, RE).
A1, por sua vez, usou dados para sustentar sua opinião, apesar de ter escolhido outro tema para escrever sobre, o que desconfigura a escrita como RE. Ainda assim, em comparação à V1 seu texto fica mais conciso e direto, como se vê em:
Por outro lado, em países como o Brasil, onde 5% da população detém a mesma renda que os outros 95%, a violência é absurda e cresce a cada dia. Por isso, um grande passo para reduzir a criminalidade em nosso país é reduzir as diferenças sociais. (A1, P5, -).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando os textos desenvolvidos ao longo do semestre, pode-se ver com clareza a apropriação das qualidades discursivas ao longo dos textos. Como exemplo, percebe-se que a unidade temática, grande problema na primeira tarefa, passa a ser mais bem desenvolvida nos próximos textos, tornando-os mais coesos e possibilitando o uso das demais qualidades discursivas. Assim, percebe-se como essa qualidade específica é essencial, uma vez que sem ela o texto é incapaz de adequar-se às outras, tais como objetividade e concretude, e seguir um fluxo lógico de informações. Também é importante analisar as evoluções das primeiras versões até as reescritas, que mostram como o processo de leitura em sala de aula junto com os comentários dos colegas e/ou o parecer da professora cumprem seu papel de alertar o aluno escritor de suas faltas, guiando-o até que seu texto torne-se compreensível não só para ele, mas para qualquer leitor. Em geral, vê-se primeiras versões com falta de objetividade e/ou concretude, enquanto que as reescritas adequam-se a elas.
De forma geral, a disciplina de Leitura e Produção Textual cumpriu seu objetivo de tornar o aluno não só um escritor, mas também alguém esclarecido a respeito dos aspectos que qualificam um texto, capaz de ler e analisar escritos de outros escritores ou os seus próprios, com um olhar mais imparcial. Através do conhecimento teórico de um hábito aparentemente tão natural quanto a escrita e a leitura, a disciplina nos dá uma visão crítica que vai muito além do simples gosto, bem como a essencial habilidade de escrever para todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAREGNATO, Rita Catalina Aquino; MUTTI, Regina. Pesquisa Qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Florianópolis, 2014. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/tce/v15n4/v15n4a17> Acesso em 04 de julho de 2016.
GUEDES, Paulo Coimbra. Da redação escolar ao texto: um manual de redação. Porto Alegre : Editora da UFRGS, 2004.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e Escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
PLATÃO, F. & FIORIN, J.L. Lições de Texto: Leitura e Redação. São Paulo: Átila, 2006.
ROTTAVA, Lúcia. A leitura e a escrita na pesquisa e no ensino. In Espaço da Escola nº 27. Editora Unijuí, 1998.
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