Aluno 84
Reescrita
O memorial é um gênero
textual que registra trajetórias de vida. Vasculhando as gavetas da memória,
recordei algumas experiências de leitura ocorridas durante a infância, que
contribuíram para minha formação como leitor hoje. A primeira lembrança está
ancorada em jornais e revistas que meu pai trazia do trabalho. Motorista de uma
instituição de ensino, ele tinha acesso a publicações diversas, como periódicos
diários e semanais. No final do dia, ou quando os impressos estavam prestes a
ser descartados no lixo, ele os levava para casa. Não me lembro de ler
histórias infantis, mas páginas desses textos jornalísticos, e nem me importava
com o atraso das informações. Meu pai, talvez até de uma maneira inconsciente,
estava contribuindo para eu desenvolver a leitura como uma habilidade presente
na construção do conhecimento. Sobre a responsabilidade dos familiares em
estimular a prática da leitura, Rottava (2000) afirma que:
[...]
a família precisa ter presente a ideia de que a leitura perpassa todas as ações
e tarefas realizadas dentro de casa, tais como ler o rótulo de um alimento, ler
um manual de instrução, uma revista ou jornal, dentre outras, bem como
incentivar à prática constante da escrita. (p. 13)
Histórias verídicas contadas
através das notícias e entrevistas mesclavam informação e entretenimento em
textos relativamente curtos e ilustrados. Essa forma de exercitar a leitura me
atraía, pois permitia saber mais sobre o mundo real na minha própria casa.
Entretanto, o que mais me chamava a atenção era o “Segundo Caderno”, a parte
cultural do jornal. Lia as tirinhas e horóscopo, que estavam diagramados na
mesma página. Na seção também havia o resumo das novelas e a programação das
emissoras de televisão, que eu lia com uma curiosidade memorável, em virtude
dos meus níveis de conhecimento dificultarem a compreensão dos textos mais
complexos do jornal. Eu viajava pelas
editorias sem saber direito o que cada uma significava, tendo em vista meu
pouco “conhecimento prévio”, conforme descrito por Kleiman (1995):
A
compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na
leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É
mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento
linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue
construir o sentido do texto. (p. 13)
A escola foi a responsável
por me alfabetizar, orientar para o domínio da tecnologia da escrita. Porém,
foi em casa que eu exercitei as práticas sociais de leitura e de escrita,
incorporando de maneira funcional as capacidades que o fato de aprender a ler e
escrever me propiciaram. No contexto familiar em que eu estava inserido,
desenvolvi o hábito, as habilidades e até mesmo o prazer de leitura e de
escrita do gênero informativo. Eu estava treinado para decodificar o material
escrito, mas o hábito de ler jornais e revistas foi o grande responsável por
desenvolver minha habilidade de letramento, considerando a conceituação
proposta por Rottava (2000) para diferenciar um ser alfabetizado de um ser
letrado:
Alfabetização
significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de
quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de
leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas
habilidades) as práticas sociais que usam a escrita. (p. 12)
O papel da escola foi memorável
para eu aprimorar minha capacidade de ser letrado que havia desenvolvido em
casa e, por consequência, desenvolver a habilidade de escrever, considerando o
caráter indissociável da leitura e da escrita para produzir conhecimentos
(ROTTAVA, 2000). Além disso, a mesma autora afirma que “tanto a leitura quanto
a escrita podem ser consideradas atividades de construção dos sentidos de um
discurso” (1998, p. 67). A escola pública onde eu estudava organizava todos os
anos a Feira de Ciências. Sem ideias para experiências científicas, eu escrevi
uma peça de teatro de fantoches. O tema era erosão e preservação ambiental. Nas
palavras do texto original, os diálogos explicavam, através de uma linguagem
objetiva, que não deveríamos jogar lixo nas ruas. A estratégia foi usar a habilidade
da escrita informativa (legada da leitura das publicações jornalísticas), para
tratar de um assunto estudado nas aulas de Ciências e, dessa forma, habilitar a
peça para ser inserida no evento científico. O trabalho da 4ª série rendeu ao
grupo de atores e ao dramaturgo que vos fala a medalha de 1º lugar na
competição de “experiências”.
Recapitulando memórias dos
anos de escola, não desenvolvi o hábito de ler livros de ficção. As lembranças se
restringem a livros infanto-juvenis da série Vaga-lume, como a Serra dos Dois Meninos e A Ilha Perdida. No ensino médio, essa
característica se repetiu. As leituras obrigatórias da disciplina de
Literatura, quando lidas, eram mais por dever do que prazer. Eu gostava mais de
elaborar slides ilustrados e apresentar os trabalhos em sala de aula, aliando
recursos audiovisuais a uma escrita objetiva, para tornar o conhecimento
didático – herança que atribuo ao hábito de ler jornais e revistas desde a
infância. A leitura e a escrita – sobretudo pela influência jornalística –
foram atividades fundamentais para minha formação cultural como ser letrado,
alcançando, assim, um de seus propósitos essenciais: a construção de
aprendizagem. Por fim, a leitura no contexto acadêmico é facilitada pelo nível
de conhecimento prévio construído com o hábito de ler publicações
jornalísticas, tendo em vista o caráter objetivo presente tanto no gênero
informativo quanto no científico.
Referências
bibliográficas
KLEIMAN, Angela. Texto
e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995, p.
13.
ROTTAVA, Lucia. A
importância da leitura na construção do conhecimento. Revista Espaços da
Escola, Unijuí, Ijuí/RS, ano 9,
n. 35, p. 11-16, jan.-mar. 2000.
________. A
leitura e a escrita na pesquisa e no ensino. Revista Espaços da Escola, Unijuí, Ijuí/RS, ano 4, n. 27, p.
61-68, jan.-mar. 1998.
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