segunda-feira, 29 de junho de 2015

Letras: amor, ódio e amor.

Reescrita
Aluno 47


      Minha memória de escrita começa ainda muito cedo: aos três anos de idade, acompanhava minha mãe no curso de Magistério e, devido à idade apropriada e ao interesse, acabei virando “cobaia” do grupo inteiro. “Bianca, sabe que letra é essa?” “Bianca, sabe como se pronuncia esses dois sons juntos?”. Eu ganhava livrinhos coloridos que estimulavam a leituras, exercícios de contorno das letras cursivas em cadernos de caligrafia e professoras de dedicadas que tentavam me ensinar de todas as formas; elas, uma aluna para testarem seus métodos.
     Depois de alguns meses de esforço conjunto, finalmente, em um sábado ensolarado na turma de Magistério, li minha primeira palavra. Estava escrita no quadro negro e, quando ninguém estava prestando atenção em mim, li-a em voz alta, com convicção e sucesso, para alegria e festejo da turma toda que me ouviu.
      Essa foi a primeira e uma das minhas mais marcantes memórias de leitura. Fui despertada ao mundo das letras, antes mesmo do período escolar, pelos meus pais. Este é um dos tópicos abordados por Rottava (2000), a autora diz que, uma vez conscientes desse papel, os pais devem ser responsáveis pelo incentivo da leitura, pois a leitura é fundamental ao indivíduo no meio social, faz parte de todas as áreas do conhecimento e é importante a todas as comunicações. Nesse aspecto, fui muito bem contemplada pelos meus pais.
      Lembro-me dos primeiros livrinhos que consegui ler: “O Patinho Feio”, “O Boto Cor-de-rosa” e a “A Estória do Abacaxi”. Segundo Britto (2012), a leitura de mundo precede a leitura de palavras, é feita primeiramente através do nosso conhecimento prévio sobre o assunto. Hoje, então, sei que os li, mas não palavra a palavra, uma vez que minha mãe já havia lido milhares de vezes aqueles textos para mim e, assim, eu apenas identificava o que estava escrito utilizando minha vivência sobre aqueles livrinhos.
      Quando entrei na escola, a leitura já era fácil. Minha professora solicitava que lêssemos uma palavra para cada letra do alfabeto e eu já conseguia fazê-lo quase instantaneamente. A partir desse momento e até o ensino médio, a leitura por prazer adormeceu na minha vida e ela se tornou unicamente escolar: livros didáticos, textos de história, geografia, artes. O incentivo familiar direcionou-se para as leituras “obrigatórias”. Segundo Britto (2012), essas leituras escolares não participavam para a minha construção como leitora, embora envolvessem teoricamente aprendizados, apenas faziam parte do meu dia a dia. A falta de interesse que essas leituras me incitavam, por causa da forma como me eram apresentadas, excluía o papel fundamental da leitura de um texto: ampliar as formas de perceber o mundo, construir um leitor com pensamento crítico.
     Penso que a falta de incentivo à leitura por prazer tenha sido responsável pelo meu temporário desinteresse. Fato esse, que me causou grandes problemas com as disciplinas, principalmente com as que exigiam maior capacidade com as palavras, afetando, consequentemente, a minha produção de conhecimento de forma geral.
Ler e escrever são particularmente indissociáveis, pois podem ser vistos como evento social, no qual os leitores, do mesmo modo como os escritores, compartilham pensamentos e idéias e, particularmente, objetivos afins que os constituem também produtores de conhecimentos. (ROTTAVA, 2000, p. 14).
     Logo, podemos concluir que quem não lê, tem dificuldades para escrever e, por conseguinte, para entender sintaxes e interpretar textos que ficam, a cada nível, mais difíceis no contexto escolar. Não apenas para a língua portuguesa, mas em todas as disciplinas, pois têm por objetivo construírem conhecimentos utilizando as interpretações e os conhecimentos de mundo.
    Sempre suspeitei que a falta de leitura fosse responsável pelas minhas dificuldades, mas nenhum livro me interessava, nem me fazia sentir algo que eu sentia quando tocava algum instrumento musical, que me fizesse entrar em um mundo e perceber outros sentimentos. Naquele momento, eram apenas palavras jogadas no papel. Ainda assim, lia com freqüência gibis da Mônica e as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo do Monteiro Lobato, simplesmente por fazerem parte do meio social escolar em que eu estava inserida.
      Foi somente no segundo ano do ensino médio, quando decidi pela profissão da medicina e, por essa razão, freqüentei um curso pré-vestibular, que meus hábitos mudaram. Depois de ler os maçantes Lucíola de José de Alencar e O Uraguai do Basílio da Gama, estava decidida que nunca mais teria gosto pela leitura. Foi então que o meu professor do cursinho desafiou as meninas a lerem e compreenderem o complexo romance de Clarice Lispector: A Paixão Segundo GH. “Desafio aceito!”. Apaixonei-me a primeira vista, identifiquei-me instantaneamente e percebi que a leitura é muito mais do que palavras jogadas em um papel, mesmo sendo esta a impressão que temos ao ler textos que não compreendemos ou não nos interessam.  
      Não consigo avaliar se a lembrança do meu primeiro livro como leitora de fato é mais forte que a leitura da minha primeira palavra, pois ambas são essenciais para minha vida. No entanto, foi Lispector quem me motivou e que, verdadeiramente, me fez ter vontade de ler outros livros, conhecer o mundo que se esconde em cada história, os sentimentos que podem existir. A partir de então, nunca mais parei de ler por prazer, passei a estar sempre com um título novo por perto.
       A paixão pelo mundo da leitura foi tão forte que se transformou em mudança de planos: deixar o sonho da medicina e ir para o curso de Letras, onde poderia estudar aprofundadamente a literatura e aprender de forma mais técnica sobre os livros. A leitura, que antes era tão desinteressada, tornou-se profissão.

REFERÊNCIAS
ROTTAVA, Lucia; A Importância da Leitura da Construção de Conhecimento In Espaço da Escola; n. 35; p. 11-16; 2000
BRITTO, Luiz P.L; Leitura: acepções, sentido e valor In Nuances: estudos sobre Educação; v.21. n. 22; p. 18-22; 2012

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