Aluno 49
Reescrita
Durante oito anos morei numa casa cor vermelho-desbotado em Viamão, número quarenta e seis. Eu lembro o número porque se fosse ao contrário seria sessenta e quatro, que era onde morava a minha amiguinha da rua de baixo, que foi quem me apresentou o Pedro. Tentar me separar dele, desde então, tornou-se como tentar desgrudar goma de mascar do cabelo de criança: tarefa provavelmente fadada ao fracasso.
Era uma das vezes em que eu ficava deitada no chão da esquina da Rua dos Beija-flores, por volta das sete da noite, hora em que eu chegava da escola. O Pedro chegou numa bicicleta roxa possivelmente para meninos do dobro da altura dele, jogou ela no chão e, com a elegância de uma centopeia andando de salto alto, sentou ao meu lado, em cima do muro cinza que marcava o nosso encontro há cinco anos.
- Gosto do seu uniforme.
- Obrigada! Também gosto do seu.
- Você quer me dar um beijo na boca? Sem língua mesmo, mas eu escovo os dentes. Responde até as oito!
Saí correndo como se cordas puxassem os meus pés, o que fez com que eu arfasse como um paciente terminal com complicações respiratórias, e quase me tornasse um, caindo no chão cheio de lama ao tropeçar no meu cadarço, usualmente desamarrado. Nada disso importava, já que eu me sentia como quando você tem sete anos e é Páscoa.
Entrei no meu quarto e deitei no chão gelado e branco até que a marca do rejunte do piso ficasse carimbada em meu rosto. Exercitei, enquanto me olhava no espelho, de modo suficiente para que meu reflexo se cansasse do meu semblante. Dei passos estreitos e largos, plantei bananeira e roí minhas unhas do pé. Abri a porta e fechei tantas vezes que quase estraguei a fechadura. Enchi o peito de ar e, sentindo a adrenalina que as pessoas devem sentir em situações de risco, fiz o que havia planejado durante os últimos quarenta minutos.
-Mãe, posso beijar o Pedro?
Expliquei para ele que minha mãe não havia deixado, mas, que se ele quisesse, ainda podia segurar minha mão. Segurou, além dessa, muitas outras vezes durante os anos que mantivemos contato, até que, em dois mil e onze, mudou de cidade. Foi, ainda assim, mais importante do que qualquer cara* que eu tenha beijado nos anos seguintes, quando não precisava mais pedir autorização.
*típico da oralidade propositalmente
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