segunda-feira, 29 de junho de 2015

MEMORIAL: O MACHADO QUE QUEBRA MEU GELO

Reescrita
Aluno 50


Rever memórias nos toca de um modo ou de outro. Estamos tão acostumados com o mesmo vento, o mesmo sol, o mesmo pulsar no peito, que só quando nos relemos por dentro notamos quantas páginas se passaram. A vida, afinal, não passa de um breve folhear de um livro que tem como destino alguma prateleira empoeirada; e por mais besta que seja a história ainda assim nos sentimos tão apegados a ela.
Nas minhas primeiras páginas, já amareladas, existe uma casa onde se preservava um único livro, cujos salmos já mal eram lidos. Literatura era uma palavra exótica.  Meu pai, devido às carências de infância, era um sujeito de pouco estudo, minimamente dado à leitura e, nas raras vezes que o fazia, tinha de mexer os lábios e cochichar vagarosamente para absorver que no princípio Deus criara o céu e a terra. Entretanto, seu baixo nível de alfabetização não o impediu de me ensinar o pouco que sabia antes mesmo de me mandar à escola. Bondosamente me instruiu – que seja seu o céu que no princípio Deus criou –, e pacientemente aprendi. Fui à pré-escola já alfabetizado, mas a única coisa que eu lia era alguns anúncios de outdoors nas ruas. Desse modo, não seria correto afirmar um letramento de minha parte à época – o fato de eu ser capaz de lidar com a leitura e a escrita ainda não servia de sustento para a preservação de tais atividades. Para melhor exemplificar essa distinção entre alfabetização e letramento, tomo como referência o texto de Lúcia Rottava:
“Alfabetização significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas habilidades) as práticas sociais que usam a escrita.” 
(ROTTAVA, 2000, p. 12)
Ou seja, eu, o guru da turma na pré-escola por saber ler e escrever, não fazia outra coisa que não fosse decifrar os signos (mais recorrentes) da língua portuguesa. Mesmo assim, todas as minhas ilustrações eram acompanhadas por um balão de fala, com palavras cada vez menos deficientes à medida que a escola me fixava a Sagrada Gramática. Entretanto, o fato de a escola ter desenvolvido minha capacidade de decodificar os signos da escrita não colaborou – esteve muito longe de colaborar, em bem da verdade – com meu letramento. Sujeitar o aluno às regras da norma-padrão não implica o desenvolvimento do gosto pela leitura e tampouco faz suscitar nele o desejo de cultivar a prática da escrita. É como afirma Rottava (2000, p. 13), ao colocar que quando “[...] a escola alfabetiza acreditando estar expondo os alunos à pratica da leitura, na verdade o que está fazendo é ‘treinando-os’ a simplesmente decodificarem um material escrito”.
Foi só mais tarde, quando fui presenteado por uma prima minha com um enorme livro, uma compilação intitulada Um Tesouro de Contos de Fada lindamente ilustrada, que se deu início o meu processo de letramento. A princípio o que me chamou a atenção foram as ilustrações magníficas, mas pouco depois já estava encantado com os tantos mundos que visitava em leituras vagarosas. Logo, como consequência da leitura, aprimorei meus conhecimentos linguísticos o bastante para ler de modo mais crítico as cartas que o Papai Noel deixava para mim, e pude chegar à conclusão de que ou o bom velho não existia, ou havia sido alfabetizado por meu pai. Não tardou para que o Papai Noel se tornasse literatura para mim, tanto quanto as personagens de Andersen e dos Grimm, e talvez tenha sido esse o momento primeiro em que o letramento me guiou para uma descoberta inusitada.
Passadas algumas tantas páginas, encontrei para mim um dos amigos mais verdadeiros que já tive em um período em que a vida tornava-se cada vez mais assombrosa. Entre o mundo ideal que me fora ensinado em casa e o mundo rude vomitado pela escola, o Dr. Watson mostrou-se uma companhia preciosa. A figura de Sherlock Holmes e o mistério que envolvia suas aventuras deram a mim um novo mundo. As histórias de Arthur Conan Doyle tiveram papel imprescindível em minha formação como leitor. Nesse ponto da vida a literatura tornara-se parte fundamental da minha existência, passara a ser identidade.
Como letrado, pouco a pouco meus gostos literários amadureceram, e pouco a pouco meus conhecimentos linguísticos foram se ampliando ao passo que se ampliava também meu conhecimento de mundo. Conheci Tolkien, Poe, Hesse; desenvolvi paixões por Machado de Assis e Jorge Amado. O processo de letramento ao qual eu mesmo me sujeitei fez com que cada livro lido contribuísse para a leitura de outro, que cada conhecimento adquirido por uma leitura prévia fosse um degrau para um novo saber. Dessa forma, a compreensão de determinado texto só me era possível porque com textos anteriores eu já ampliara meus conhecimentos linguísticos e textuais – eu edificava, aos poucos, uma escada de saberes. Construir o sentido de um texto passa a ser, afinal, uma tarefa do leitor, a qual implica tanto a capacidade de discernimento como também suas noções de mundo, fundamentos trazidos em sua bagagem cultural/intelectual.
 “A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto” 
(KLEIMAN, 1995, p. 13)
Desse modo, assimilei no ato de ler seu papel incontestável na preservação e construção saberes. Graças a isso, a identidade que a literatura se tornara para mim assumiu um caráter de constante formação: adentrei nos versos de Augusto dos Anjos e de Mário Quintana e fi-los pedaços de mim. O romance 1984, de George Orwell, foi um soco em meu estômago: provou que a literatura política também pode ser uma arte ao passo que abalou nas camadas mais profundas tudo aquilo que eu possuía como verdade; O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, um uivo cortês nos meus vazios e um grito selvagem que me atentou a todas as ambivalências humanas. Reconheci e reconheço até hoje a leitura como mais que uma simples fuga ou passatempo. O ato de ler é uma experiência de ampliação existencial – é por ele que podemos ter contato com diferentes pontos de vista e expandir nosso discernimento; o ato de ler, para melhor referir, é uma
“[...] prática social circunstanciada, favorecendo o alargamento do espírito e das possibilidades de atuação e intervenção na sociedade. [...] Um valor, portanto. Um valor que carrega um princípio de humanidade e que implica, mais que o simples hábito, uma atitude.”
(BRITTO, 2012, p. 30)

Parafraseando Kafka, a prática da leitura – a literatura, mais especificamente, tornou-se o machado que constantemente quebra o mar gelado em mim.



REFERÊNCIAS

ROTTAVA, Lucia. A importância da leitura na construção do conhecimento. In Espaços da escola. n 35, p. 11-16, 2000.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4ª ed. Campinas: Pontes, 1995.
BRITTO, Luiz Percival Leme. LEITURA: ACEPÇÕES, SENTIDOS E VALOR. In Nuances: estudos sobre Educação, v. 21, n. 22, p. 18-32, 2012.

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