sábado, 20 de maio de 2017

Reescrita
Aluno 144



Posso me lembrar que era um dia calorento, mas eu era inocente demais para reclamar do calor. Qualquer que seja a estação, ela é capaz de alegrar uma criança que, independente da circunstância, faz a sua própria diversão. Eu era daquelas crianças raras de se encontrar hoje em dia: onze anos, uniforme escolar sujo nos joelhos, cotovelos ralados, unhas roídas, seca como uma tábua. Eu era, é claro, tão alheia à tecnologia, que passava as horas do recreio guerreando com os coquinhos das árvores do colégio e os meus colegas de classe.
Por falar em colégio, foi justamente esse o cenário, e mais precisamente um lugar conhecido como biblioteca, que até aquele momento eu desconhecia. Também não era uma grande biblioteca, pois as escolas públicas não possuem grandes bibliotecas, mas era um lugar aconchegante, com livros de folhas amareladas, cheiro de papel antigo e, nos dias de sol – mesmo o mais quente de todos – era belo observar seus raios vazarem a cortina cor de pêssego e atingirem a grande mesa de madeira envernizada. A coisa mais tecnológica que tinha naquela biblioteca era um telefone fixo, de cor branco-amarelado e com um fio longo e enrolado. Eu, particularmente, nunca o ouvi tocar, e sempre achei que ele era programado para obedecer ao grande aviso de silêncio colado em uma das três estantes.
Lembro-me bem: em minha primeira aula de Português da 5ª série conheci este mágico lugar. Eu e meus 36 colegas de classe, todos assustados com a exclamação da professora:
- Cada um de vocês deve escolher um livro, lê-lo ao longo do mês e devolvê-lo à biblioteca, junto com um resumo do mesmo. – Mas eu mal podia ouvi-la. Só pode me entender completamente aquelas meninas que, ao olharem para uma estante repleta de livros pela primeira vez, duas ou três vezes maior do que ela, descobrem que o mundo é bem maior que o seu quintal. Aquelas estantes, forradas de livros de um lado a outro, consistiam numa imensa fonte de prazer e curiosidade, fazia minhas mãos suarem e uma grande dúvida se abater sobre mim: afinal, qual deles eu poderia escolher? Só senti algo assim novamente quando dei o meu primeiro beijo, e ainda assim aqueles livros me ofereceram muito mais emoção do que um beijo juvenil é capaz de ofertar.  
Daquela maneira, eu corria as mãos pelas estantes. Curiosa, animada, indecisa e, confesso, com uma adrenalina incontida que me fazia falar mais alto do que o permitido. A bibliotecária, sem pena, erguia as pupilas penetrantes por cima dos óculos de coruja e levava o dedo à boca de tal forma pedindo silêncio que não demorou muito e ela decorou meu nome. Poder ter tantos livros assim, ao meu alcance e prontos para serem lidos era a maior novidade. Lembro-me de ter lido A Ilha Mágica em pouco mais de dois dias, e meu sangue fervilhava de emoção. Eu tinha sido transportada para uma ilha misteriosa com crianças que – eu cria – eram iguais a mim: uma garota rodeada por cinco primos em uma fazenda distante de qualquer cidade, que após ver uma luz misteriosa no cume de uma montanha brilhar toda noite, decidem averiguar o que é. Após alguns dias de viagem e acampamento, entram na montanha por uma caverna, onde descobrem ouro, pedras preciosas, um rio de águas límpidas e, principalmente, seres de outros tempos morando ali. Após a leitura, sentei-me para resumir. Mas naquela época não resumi tão bem quanto fiz agora, oh não! O que era para ter sido um resumo transformou-se numa história: meu primeiro texto infanto-juvenil de 72 páginas: a Ilha da Amizade, escrito a mão em folhas de sulfite dobradas ao meio que eu recolhia onde encontrasse – minha família não tinha dinheiro para comprar – e com ilustrações de minha autoria. Eu ainda me dava ao trabalho de encadernar. Criei minhas próprias personagens, que eram mais do que isso, eram meus amigos, e juntos vivemos uma aventura em uma ilha que, em sonhos, eu desejava que fosse real. E foram. As ideias fluíam de tal forma e tão deliciosamente, que todo meu tempo livre era gasto na escrita. Eu carregava minha pequena bolsa com papeis e caneta para todo canto, e não importava onde eu estivesse que, se uma ideia surgia, ela era imediatamente escrita.
É claro, não obtive a nota do resumo. Mas em contrapartida isso inspirou a professora a nos dar um trabalho diferenciado durante aquele bimestre: cada um deveria criar um livro, mesmo que escrito a mão (pois não tínhamos muitos recursos), e encaderná-lo. No fim, ele seria doado à biblioteca.
Desta forma, o tempo foi passando. Com a adolescência ganhei um computador, mas a internet só veio anos mais tarde. Então, sem redes sociais ou nada mais que eu pudesse fazer, punha-me a escrever quase que diariamente. Assim, mais um infanto-juvenil surgiu: O Guardião, de linguagem fluida e simples, sobre dois monstros apaixonados por uma indefesa moça e que por ela eram capazes de fazer tudo, livro este que tenho arquivado até hoje. Escrever com música era fundamental para a história existir, e aquelas personagens eram tão reais que, quando me dei por conta, me descobri apaixonada por aquele monstro de coração mole e ar descolado que eu mesma criei, cujo toque só pude sentir em pensamento. Desta forma eu escrevia, criava meus amigos, meus inimigos, criava uma vida alternativa para poder viver, textos que são eternos em minha memória.
            Orgulho tenho e sinto quando penso que, não muito longe daqui, alguma criança pode estar naquela mesma biblioteca, sentindo o raio do mesmo sol tocar sua pele, e quem sabe?, talvez se apaixonando pelo mesmo monstro que eu...

Nenhum comentário:

Postar um comentário