sexta-feira, 20 de junho de 2014

A casa de doces que virou o meu mundo de palavras

1ª Versão
Por Aluno 34


            Uma leitura, ou melhor, o processo de formação e aprimoramento de um indivíduo que goste de ler constrói-se a partir do conhecimento e realidades vivenciadas pelo mesmo. Também precisa estar relacionada aos seus propósitos, vinculando-se a sua realidade e expectativas sociais.
            Posso admitir sim que o ato de ler em minha vida apareceu a partir da minha realidade e que hoje me denomino leitora pelo meu conhecimento de mundo, intelectual e “de berço”: nasci rodeada de livros. Minha mãe era professora de Língua Portuguesa e Literatura, então sempre fui acostumada a ter uma biblioteca particular em casa.
          Lembro-me do tempo em que eu era criança, quando meus pais se separaram e eu tinha apenas cinco anos de idade. Hoje sei o quanto isso foi ótimo de ter acontecido; o lado bom da situação foi que eu pude aproximar-me da minha mãe e conhece-la melhor do que talvez eu jamais previsse, pois fomos viver em um apartamento de um dormitório, apenas nós duas.
            De manhã, eu e ela íamos ao colégio, instituição em que eu estudava e ela dava aulas para o Ensino Médio. Como grande parte dos professores, suas tardes eram preenchidas de inúmeras provas e trabalhos para corrigir, o esforço de pensamento para planejar uma aula criativa, dinâmica e que ensinasse os seus alunos de modo cativante. Em meio a tais tardes comecei a interessar-me por Literatura; da maneira mais simples e sutil que se possa imaginar. Talvez eu até consiga afirmar que tinha os meus seis ou sete anos; já estava apaixonada por essa arte e não sabia.
           Dizem os estudiosos que um dos fatores da leitura é despertar o interesse através do questionamento. Foi assim que iniciei a minha vocação: perguntando.
            Almoçávamos ao chegar em casa depois da escola e, logo em seguida, terminando a refeição, ela já pegava as inúmeras atividades dos seus alunos e ia trabalhar. Ficava sentada na cozinha, sempre na mesma cadeira, sem tirar os olhos do papel, nem para conferir as horas. Enquanto isso, eu assistia desenhos na televisão, brincava com as bonecas e bagunçava a sala inteira. Minha mãe ficava lá, num silêncio indiscutível. Eu tinha fome ao decorrer da tarde, ia até a cozinha pegar algo para comer, minha mãe me ajudava a preparar o meu lanche e rapidamente voltava às correções. Caso eu tivesse de realizar as tarefas que recebia da escola, sentava ao lado dela e estudava em silêncio.
            Às vezes, a mudez era interrompida com as minhas perguntas; observava algumas das provas, de notas maravilhosas ou vermelhas, eu estava aprendendo a ler e já conseguia identificar o nome do capítulo de um livro de teoria literária. Após isso, era hora de começar o questionário:
- Mãe, quem é esse tal de Gil Vicente? Ele já morreu? Por que Machado de Assis é tão famoso? Qual é o nome daquele teu livro favorito mesmo? É “Noite na Caverna[1]”? O que a Lya Luft gosta de escrever? Por que tu estás lendo um livro tão grande? Qual a história dele? Com quantos anos eu posso ler esse tal de Policarpo Quaresma?
            Ela, calmamente, expondo todo o seu amor materno e literário, interrompia as atividades e respondia o que eu queria saber. Desta forma, questionando e escutando, aprendi a gostar de Literatura e, muito além disso, explorar o meu gosto pela leitura. Não apenas no papel, mas no ouvido também: à noite, antes de dormirmos, eu geralmente pedia a mesma história, o clássico universal João e Maria. Ela contava, sem se cansar, pois sabia qual era a minha maior expectativa diante deste conto: a descrição da casa de doces da Bruxa, em que os irmãos ficariam posteriormente presos para virarem uma refeição. Todas as noites, era como se fosse uma nova história: a casa de doces nunca foi a mesma para mim. Queria que minha mãe descrevesse os detalhes de portas, janelas, telhado, chaminé, tapete de entrada, paredes, maçanetas e venezianas. Pirulitos, balas, chocolates, bolos, bolachas recheadas de todos os sabores e marcas transformavam-se em materiais de construção e móveis.
            Acredito que esse simples momento de oralidade com a Literatura Clássica e as inúmeras caracterizações da casa de doces que escutei auxiliaram-me a estimular a criatividade em criar as minhas próprias histórias; meus contos, narrativas em quadrinhos, os primeiros poemas. Hoje a escrita é um dos meus principais afazeres e dedicação; junto com as palavras, necessito de uma leitura apaixonante e, ao mesmo tempo, crítica. Tenho um prazer enorme em “devorar” livros e “fugir” da realidade, pois eu creio que tal fuga seja a única maneira de compreender o mundo em que vivemos. Conforme o texto de Rottava (2000):
 “Ler e escrever são praticamente indissociáveis, pois podem ser vistos como evento social, no qual os leitores, do mesmo modo como escritores, compartilham pensamentos e ideias e, particularmente, objetivos afins que os constituem também produtores de conhecimentos.”

            Hoje, vejo que a leitura me completa e faz com que eu aprenda sobre a vida, que eu me conheça melhor e saiba lidar com os outros. Como tal citação mencionada, aprendi a gostar de leitura e escrita de forma unida, crendo que uma divisão prejudicaria todo o contexto de ler e criar histórias, pois aprendi a escrever, encarar a realidade e todos os meus problemas lendo o texto dos outros, tanto de forma sentimental quanto crítica. Complementando, consigo ler pelo “conhecimento prévio” - como diz a autora Angela Kleiman (1989) - , sendo que este é fundamental para atingir os objetivos de uma leitura, que é estimular e formar o leitor. Tive o meu prévio saber a partir das inúmeras perguntas que fazia a minha mãe – ressaltando a importância e influência familiar para a formação do leitor - sem ter uma intenção e nem adivinhando que, futuramente, as respostas seriam tão importantes para mim. Literatura, para mim, é amor, é o meu trabalho, minha melhor amiga e, muitas vezes, o meu único consolo. Livros conseguem falar comigo através de uma ficção: é a interpretação do real a partir de um outro ângulo, fazendo com que eu entenda a vida – meu conhecimento prévio de mundo - através de suas inúmeras perspectivas.
         Por isso, considero o ato de ler como uma releitura de nós mesmos, da criatividade, do mundo e precisa existir a partir do que sabemos e devemos conhecer. Foi feita para todos, e o escritor deve criar sem pensar na classe social que irá apreciar a obra. O livro quer que qualquer pessoa que tenha curiosidade de conhecer o mundo viva-o sem precisar sair do sofá.









REFRÊNCIAS:
KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4º ed. Campinas, SP: Pontos, 1995, p. 7-15.
ROTTAVA, L. A importância da leitura na construção do conhecimento. Espaços da escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, a. 9 n. 35, jan-mar 2000, p. 11-16
ROTTAVA, L. A leitura e a escrita na pesquisa e no ensino. Espaços da escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, a. 4 n. 27, jan-mar 1998, p. 61-68.





[1] Mais tarde, aprendi o verdadeiro nome do livro: Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo.

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