“(...) Antes que me esqueça: na gaveta da cômoda há um maço de cartas que te
escrevi de Nova Itália expressamente “para não te mandar”. Agora podes lê-las
todas. Não encontrarás nada do meu passado, do qual nunca te falei e sobre o qual
tiveste a delicadeza de não fazer perguntas. É pena. Gostaria que soubesses
tudo, que visses como minha vida já foi feia e escura e como lutei e sofri para
encontrar a tranquilidade e a paz de Deus.
Adeus. Sempre aborreci as cartas de romance que terminam de modo patético. Mas permite que eu escreva.
Adeus. Sempre aborreci as cartas de romance que terminam de modo patético. Mas permite que eu escreva.
Tua para a eternidade,
Olívia.
Eugênio dobra a carta com todo
carinho. Seus olhos estão inundados de lágrimas e ele encontra um esquisito
prazer no sofrimento e na tristeza. (...)”.
(VERISSIMO, 2005, pg. 121)
Esse
trecho de “Olhai os Lírios do Campo”, escrito por Erico Verissimo, pareceu-me a
melhor forma de iniciar essa trajetória pelas minhas vivências e de, a partir
disso, construir um belo memorial de leituras.
Se a memória não falha, conheci
“Olhai os LÍrios do Campo” em um janeiro de intenso calor em meio ao mar e ao
sol. Acredito que em 2009. Eu já era uma apaixonada pelas obras de Erico
Verissimo - ele havia me conquistado com Clarissa, ainda em 2006 - mas foi
somente em 2009 que tive o prazer de conhecer essa história tão fascinante, que
veio pela indicação de uma professora de português e literatura da minha escola
de ensino fundamental.
Pois bem, lembro-me de estar deitada
em uma rede verde, na casa da minha tia Ivete, quando abri o livro de capa
amarela e preta. O primeiro parágrafo me chamou, imediatamente, a ler o resto
da página, pelo menos. E foi assim que Erico Verissimo me pegou pela mão e me
chamou para entrar em sua literatura.
Esse “chamar” do autor para o leitor
é um elemento de suma importância. Segundo Rottava (2000), a leitura deve
provocar no leitor uma reação. Assim, querer continuar lendo não deixa de ser
uma reação positiva quando em se tratando de leitura, pois, ainda segundo
Rottava (2000), aceitar ou recusar um tema ou um assunto é, muitas vezes, o
ponto de partida para a construção do conhecimento. Eis o parágrafo que inicia
a obra de Verissimo:
“O médico sai do quarto nº 122. A
enfermeira vem ao seu encontro.
-
Irmã
Isolda - diz ele em voz baixa -, avise o doutor Eugênio. É um caso perdido,
questão de horas, talvez minutos. E ela sabe que vai morrer.
Silêncio. (...)”.
Silêncio. (...)”.
(VERISSIMO, 2005, p. 7)
Que
incrível para uma menininha de 14 anos que só havia lido histórias infanto
juvenis até então.
Sabem, eu sempre gostei de ler. Meus pais sempre me presenteavam livros; a mim e a minhã irmã. Mas a importância da obra “Olhai os lírios do campo”, em especial, é tamanha, porque foi dela que nasceu em mim o status de leitora. Sim, eu me tornara uma delas. Não havia mais salvação. Eu estava destinada a ser uma naquelas que nunca vai ter tempo para ler todos os livros que compra, nem todo o dinheiro que necessita para comprar todos os livros que quer, mas aquela que nunca vai deixar de ler. E eu leio tudo, desde literatura à instrução de rótulo de shampoo (preferindo, porém, a primeira opção). A respeito disso, Rottava afirma que:
De outra perspectiva, a família
também não deve deixar somente para a escola o papel de despertar, incentivar e
motivar a leitura. Grande parte dessa responsabilidade é também dos pais que
devem proporcionar aos seus filhos o acesso às publicações e incentivá-los à
leitura. Além disso, a família precisa ter presente a ideia de que a leitura
perpassa todas as ações e tarefas realizadas dentro de casa, tais como ler o
rótulo de um alimento, ler um manual de instrução, uma revista ou jornal,
dentre outras, bem como incentivar à prática constante da escrita.
(ROTTAVA, 2000, p. 13)
Nesse
contexto, acredito que meus pais desenvolveram com muito êxito a tarefa de
estímulo à leitura.
Mas enfim, agora você deve estar aí se debatendo de
ansiedade querendo saber o porquê de tanta devoção após esse livro, que talvez
não diga nada para você. Eu respondo: eu sou Olívia. Eu sou Eugênio[1]. Eles são
eu e nós somos um só. Pela primeira vez, em toda minha curta existência, eu
havia “conhecido” pessoas que eram tão parecidos comigo. Mas eu não descobri
isso logo aos 14 anos. Essa descoberta faço até os dias de hoje: sempre que me
pego relendo aquelas páginas amareladas e reconheço ali um pouquinho mais de
mim; de quem sou, do que amo, do que dói em mim, do que me faz criança e etc.
São essas as sensações que só os livros - e nada mais - podem causar em pessoas
como eu: leitoras. Assim, o reconhecimento com a obra de Verissimo foi dado
através de várias passagens, que lembravam-me de momentos da minha vida, de
cenas vividas.
“Calça
furada!
Calça furada-dá!
Gritavam em cadência uniforme,
batendo palmas. Eugênio sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Balbuciava
palavras de fraco protesto, que sumiam devoradas pelo grande alarido”.
(VERISSIMO, 2005, pg.36)
Olhem
eu ali. Sim, eu estou bem ali. Não gritando em cadência uniforme, mas com a
calça furada. Ali estou eu na escola, naquela tarde em que, sem querer, sentei
em um banco que continha um prego “semi-pregado”, e eu, ao levantar
bruscamente, rasquei a minha calça bem na “bunda”. Naquela época não existia o
conceito de bullying. Mas foi bullying. E dos grandes. Fiquei sem ir à aula por
uma semana, escondida na vergonha de ter uma calça rasgada em pleno recreio
escolar.
“O dia mais importante da minha vida
foi aquele em que, recordando todos os meus erros, achei que já chegara a hora
de procurar uma nova maneira de ser útil ao próximo, de dar novo rumo às minhas
relações humanas. Que era que eu tinha feito senão satisfazer os meus desejos,
o meu egoísmo? Podia ser considerada uma criatura boa apenas porque não matava,
porque não roubava, porque não agredia? A bondade deve ser uma virtude passiva.
(...) Eu via ao meu redor pessoas aflitas que para se salvarem esperavam apenas
uma mão que as apoiasse, nada mais do que isso. E Deus me dera duas mãos!
(...)”
(VERISSIMO, 2005, p. 149)
Ali
estou eu, mais uma vez, nas palavras da sábia Olívia. Tudo que eu havia
pensado, até então, era fazer uma bela faculdade de Medicina e ganhar um bom
dinheiro para viajar, ter uma casa com muitos cachorros, marido, filhos e uma
cozinha maravilhosa com louças Tramontina. Eu era péssima com biologia, odiava
química e, de vez quando, me incomodo profundamente com sangue. Há, no mundo,
muitos indivíduos que só precisam de uma mão que as apoiasse, e Deus me dera
duas. Há inúmeras crianças que teriam chance, oportunidade e até “jeito” (como
gostam de dizer os ignorantes) se alguém lhes estendesse às mãos. E assim,
florescia em mim, quase que imperceptivelmente, uma visão distinta de mundo.
Distinta do que eu, até então, considerava bom e razoável; assim como o que eu
considerava ser horrível. Aprendi e nunca mais esqueci: a bondade deve ser uma
virtude passiva.
Finalmente,
todo esse reconhecimento com a obra, que fora retratado anteriormente, e os
aprendizados que dela pude tirar nada mais são do que, conforme Paulo Freire
(FREIRE apud BRITTO, 2012, p. 24), a
persepção da vida-vivida. É a ampliação da forma de ser e perceber do
mundo. Pois foi somente após essa leitura que muitos dos pré-conceitos que eu
sutilmente tateava puderam se tornar conceitos, enfim. Reconhecer-se naquela
cena tola de calça furada ou aprender uma lição de vida é, segundo Britto:
A
leitura do mundo, desde as experiências subjetivas mais íntimas até as relações
histórico-sociais mais complexas: a consciência delas e seu reconhecimento
seriam condição fundamental para que a aprendizagem formal fosse instrumento de
maior participação e de transformação da ordem social injusta.
(BRITTO, 2012, p.24).
Diante
disso, pude perceber que existem milhares de leituras que podemos realizar ao
longo de nossa vida. Entre contas de luz e Dom Quixote de La Mancha; entre bula
de remédio ou Senhora de José de Alencar. Cada leitura tem a sua função,
importância e propósito. E, independente de quais sejam eles, o importante é
ler. E, é dessa maneira, que pretendo seguir minha vida, mantendo essa “mania”
que me faz enxergar o mundo e sua realidade de formas tão distintas. O que me
move são as palavras. E são elas que me guiam a construir, todos os dias,
memoriais de leitura.
BIBLIOGRAFIA
BRITTO,
Luiz Percival Leme. Nuances: estudos sobre Educação. Ano XVIII, v. 21, n. 22, p. 18-32, jan./abr.
2012.
VERISSIMO,
Erico. Olhai os lírios do campo.
4.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
ROTTAVA,
Lucia. A importância da leitura na construção do conhecimento. Espaços
da escola. Editora Injuí. ano 9. n 35, p.11-16, jan./mar. 2000.
[1]
[1] Olívia e Eugênio são os protagonistas da obra “Olhai os Lírios do Campo”, publicada em 1938 por Erico Verissimo. Olívia e Eugênio são médicos, vivem um romance durante a graduação em Medicina, porém separam-se devido às ambições urbanas de Eugênio em ter prestígio e status social. Olívia vem a falecer, deixando para Eugênio, no entanto, uma filha, Ana Maria, e, ainda, uma lição de vida.
[1] Olívia e Eugênio são os protagonistas da obra “Olhai os Lírios do Campo”, publicada em 1938 por Erico Verissimo. Olívia e Eugênio são médicos, vivem um romance durante a graduação em Medicina, porém separam-se devido às ambições urbanas de Eugênio em ter prestígio e status social. Olívia vem a falecer, deixando para Eugênio, no entanto, uma filha, Ana Maria, e, ainda, uma lição de vida.
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