sexta-feira, 27 de junho de 2014

Estimulando um peixe com copos d’água

1ª Versão
Por Aluno 37

Nasci já esperado – primogênito. Felizmente, em meio a um ambiente abastado e, em maior ou menor escala, culturalmente estimulante; se falo vagamente, é porquê lembro-me da natureza dúbia deste estímulo cultural. Meu avô materno foi o último de uma linha de pastores, e um muito ligado às literalidades da Igreja Luterana; e minha mãe acabou por herdar sua particular voragem literária. Meu pai, também - apesar de um prático engenheiro – nunca demonstrou-se conformado com o tamanho de sua biblioteca...

               Naquela época, já começava a viver por amar aquilo que não era.

... portanto, cresci, do início da infância ao final da adolescência, rodeado primeiro da onipresença da literatura, e segundo dos mitos de Cristo – de uma veracidade incompreensível, para mim, já que Hércules nunca caçou a Hidra de Lerna e Wotan nunca construiu seu grande Valhalla. Minha grande missão, enquanto pequeno, foi desmistificar todo aquele estímulo cultural de que me alimentavam nas devoções após o almoço, de um Pai que é ao mesmo tempo seu Filho e seu Espírito, que multiplica pães e peixes para depois deixar tantos morrerem de fome, e que nos observa de tão longe e está sempre tão presente em todas as cousas. Eu era, para minha família, como Dom Quixote foi para seus amigos cura e barbeiro – algo tão alienado que somente a raiz de tantos sonhos pudesse destruir a si mesma. Irônica e felizmente, este altruísmo familiar garantia uma constante vazão de lendas além das lendas.

            Entendi, então, que vivia por amar aquilo que não era, mas poderia ser.

            Logo, tratei de certificar-me que este poderia ser tornar-se-ia um sim, era. Decidi me afastar do ambiente familiar – e desembarquei em São Paulo: fui-me embora para a Pasárgada de meus delírios mais juvenis do que adultos, em meus dezenove anos de idade. A graduação em Letras, aquela mulher à qual eu desejava, permaneceria, porém, velada em erotismo – a cama que eu escolhi, a Universidade de São Paulo, mostrava-se fria e dura como se feita de puro mármore. E a causa dessa aventura ter-se tornado de tal modo inconsequente deve-se ao Rei, meu tio, ter-se mostrado em demasiado meu amigo: pois teve o bom senso que eu não tive ao proibir-me, terminantemente, de buscar meu contento - exposto logo que cheguei em sua casa -  enquanto seu hóspede. O que acabava de acontecer foi, para minhas ideias, um aborto tão tremendo que tive o desgosto de, logo após, me apoiar em um curso de Engenharia da Computação – algo que rendeu-me ao menos a satisfação de estar afastado, um pouco mais, de
Porto Alegre. O semestre deste ocorrido me rendeu o que Dante deve ter sentido ao atravessar todos os círculos do Inferno – o horror e o sofrimento de vislumbrar uma vida afastada da luz cultural, tragada por qualquer vício escuro de tão distante daquela; odiando este vício e o adorando. Incapaz de compreender aquela verdadeira manifestação do amor divino que minha Beatriz – Literatura, dama ausente! – fazia brilhar como topázios doirados até as páginas mais bolorentas.

             Compreendi, então, que a busca incessante da desmistificação não era simplesmente impossível... ela minava os próprios alicerces da arte literária.

O mito nunca se tornaria uma estória de fato, pois sua existência está profundamente arraigada no cerne do espírito humano – precisei ser arrancado de um mundo onde imperavam as letras para entender isto. A vida é aquele mito e a imagem que se forma dele – pois ele nos conta todas as nossas histórias por relembrar-nos do que é coletivo. Exatamente da mesma forma que Deus, para Dante, era incompreensível por razão somente. E, conforme Beatriz expôs em meio aos doces ares do Éden, este pensamento não poderia ser formado sem as impiedosas lições dos pecadores no Inferno – minha sina, tão incompreendida, me fornecera a maturidade necessária para entregar-me aos afagos de minha musa.
Voltei, portanto, à Porto Alegre; ou, melhor posto, um outro homem voltou no lugar daquele. Minha família recebeu-me calorosamente – desta vez, sem mais devoções e cultos forçados. Eu estava livre para trilhar a estrada que mais me aprouvesse – e não foi uma surpresa quando reiterei meu desejo por cursar Letras. Mas, se não houve surpresa, houve admiração: o tom da voz, alto e firme – não mais de um desafiante rebelde qualquer – e a postura ao expor minhas ânsias traíram alguma profunda mudança em mim.


            Foi minha peregrinação, ao final, que permitiu-me voltar aos braços da Literatura – não mais como um marido respeitoso a ocupar o lado frio de um leito, mas como o amante que sorrateiramente penetra através da janela após tempo demais ausente: mesmo tão esperado, ainda ousadamente inconsequente - ao entregar, desconsiderado, sua vida; mas, sobretudo, bem-vindo.

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