Reescrita
Por Aluno 3
É
de certa forma complicado para um perfeccionista convicto o processo de
relembrar eventos há muito decorridos da sua infância: a falta de datas bem
definidas e de uma memória fotográfica suficientemente fixa muito me inquietavam
enquanto tentava retirar dos meus arquivos mentais, mais empoeirados pelo
desuso, um exemplar de lembrança antiga ainda apto a uma decente descrição. Não
pude encontrar, pelos meus próprios esforços, o dito grupo de velhas
fotografias neurológicas, e, muitíssimo decepcionado com a minha própria
incapacidade, resolvi trapacear na minha empreitada, requisitando os
prestativos auxílios de uma determinada assistente, única pessoa que
possivelmente ainda deteria um compartimento mental que tratasse de
convenientemente armazenar todos aqueles arquivos que há muito já haviam sido
apagados por este meu inconsequente bolo de massa cinzenta: minha mãe (grande
surpresa, não?). Com a ajuda dessa admirável mulher, tentei reconstruir uma
memória breve relativa ao meu processo de alfabetização; este, tal como o
define a seguinte citação, a qual diferencia os conceitos de alfabetização e letramento:
Alfabetização significa
apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz
respeito à condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva
(dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas
sociais também dessas mesmas habilidades) as práticas sociais que usam a
escrita. (ROTTAVA, 2000, p. 12)
Senhora L., minha auxiliar, afirma
com considerável veemência (e um esboço de lágrimas nos olhos, talvez?) que fui
presenteado com meu primeiro livro quando tinha eu nove meses de idade: um
livreto impermeável, especificamente designado para que fosse desfrutado em
meio a um relaxante banho de banheira, contendo em suas poucas páginas uma
devidamente simples lição sobre a ideia de “opostos” (seco e molhado, alto e
baixo, exemplos dessa natureza). Um adorável exemplar de literatura para pequeninos,
certamente. Por conta própria, apenas podia ler o significado representado
pelas ilustrações do querido livrinho; não conseguia fazer o mesmo com os
componentes escritos da obra, no entanto.
A compreensão de um texto é
um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor
utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua
vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o
conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor
consegue construir o sentido do texto (KLEIMAN, 1995, p. 13)
Não tinha ainda, por motivos
bastante compreensíveis, o tal do conhecimento linguístico necessário para a
leitura integral do meu primeiro livro; para que me fossem devidamente transmitidas
as ideias das quais tratava a parte escrita do texto, minha mãe decifrava, em
meio às bolhas de sabão que da pequena banheira surgiam, todas aquelas
incompreensíveis sequências de símbolos coordenadas dentro de uma lógica por
mim então ainda ignorada (sem antes me relembrar de intensamente fechar os
olhos para que não fossem eles machucados após um indesejado contato com o
xampu).
Segundo Britto (2012), decifrar e
compreender são as duas ações básicas
de ler. Pode-se dizer que, interpretando as gravuras impressas nas páginas
à prova d’água e escutando as narrações de minha mãe quanto ao conteúdo do
texto, apenas conseguia o pequeno eu compreender
o significado geral a mim apresentado por aqueles escritos, ainda que não
conseguisse decifrar, decodificar os signos ali grafados.
Iniciado o processo de mais próxima interação com os textos escritos,
apenas três meses depois da aquisição do meu primeiro livro que algum outro
fato de maior relevância se manifestou naquela minha trajetória de aprendizado.
Segundo afirma a senhora L., fonte
de inquestionável autoridade sobre este assunto ora comentado, com um ano e
oito meses de idade seria eu presenteado com o livro que mais dramaticamente
serviria como material de auxílio ao meu desenvolvimento enquanto jovem leitor:
seria a primeira obra que conseguiria ler por conta própria; o primeiro livro
por mim a ser lido sem o auxílio de qualquer adulto. Infelizmente, não me
recordo do título de tão amado livro, mas muito bem me lembro da história que
por ele era contada: tratava-se da vida de um jovem “raposinho” e das suas
aventuras em meio aos outros animais da floresta em que vivia (simples o
suficiente para que não seja necessário um mais elaborado resumo, creio eu).
Praticamente todas as noites (raras
foram as exceções), antes de dormir, pedia à minha mãe que me contasse uma
história qualquer, e certamente em mais da metade dessas noites o texto narrado
era aquele que dentro do dito livrinho havia sido impresso; era,
verdadeiramente, a minha história favorita. Sentado entre as pernas de minha
mãe, seus braços posicionando o livro aberto logo à minha frente, de modo que eu
pudesse admirar as ilustrações das coloridas páginas, escutava eu, mais uma vez,
a bendita fábula de Ferrugem, o tal raposinho. Tanto escutei aquela bela
história infantil, que em determinado momento já sabia de cor todo o texto
apresentado pelo livro, lendo-o em uníssono com a voz da senhora L.
Naturalmente, a cada releitura que fazia, associava à minha leitura do texto
novos conhecimentos, os quais eram por mim adquiridos no meu dia-a-dia, de
maneira semelhante à comentada em ROTTAVA (1998):
...o leitor interage com o
texto de diversas maneiras: através dos níveis da língua no interior do próprio
texto, das relações com outros textos, das experiências, do propósito do leitor
e do seu papel social e do contexto em que o texto foi produzido. (ROTTAVA,
1998, p. 62)
A relevância maior desse processo de
diferentes leituras de um mesmo texto foi a de que, com o passar do tempo,
comecei a “sincronizar” minha reprodução oral sistemática da história com as
letras e frases escritas relativas à fábula. Já dominando o alfabeto há algum
tempo (desde que ganhei o livro, mais precisamente), comecei a relacionar sons
com símbolos, e, por fim, símbolos com outros símbolos, decifrando e
compreendendo palavras e frases escritas. Não mais precisava do auxílio de
minha mãe para reler a história de Ferrugem, mas ainda pedia a ela que me
narrasse novamente o pequeno conto (não tinha motivos para desprezar a sua
companhia, afinal de contas).
Aprendi a ler (e, posteriormente, a escrever), portanto, sob a tutela de
uma mulher, diversas sessões de banho, uma raposa e um instinto curioso natural
a todos os pequenos jovens. Possivelmente, de forma muito dessemelhante se
daria esse meu aprendizado não fosse a minha insatisfação enquanto criança com
o famigerado “era uma vez...”; não me satisfazia com apenas uma vez; queria
uma, duas, três... quantas me fossem necessárias, realmente.
Referências
BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura: Acepções, sentidos e valor.
In: Nuances: estudos sobre educação, v.21, nº 22, jan./abr. 2012, p. 20.
KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor:
Aspectos Cognitivos da Leitura. 4ª. Ed. Campinas, SP: Pontes, 1995, p. 13.
ROTTAVA, Lucia. A Leitura e a
Escrita na Pesquisa e no Ensino. In: Espaços da Escola, Ijuí, Editora
UNIJUÍ, nº 27, jan/mar. 1998, p. 62.
ROTTAVA, Lucia. A Importância da
Leitura na Construção do Conhecimento. In: Espaços da Escola, Ijuí, Editora
UNIJUÍ, nº 35, jan/mar. 2000, p. 12.
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