quarta-feira, 25 de junho de 2014

Era uma vez... mas só uma mesmo

Reescrita
Por Aluno 3


            É de certa forma complicado para um perfeccionista convicto o processo de relembrar eventos há muito decorridos da sua infância: a falta de datas bem definidas e de uma memória fotográfica suficientemente fixa muito me inquietavam enquanto tentava retirar dos meus arquivos mentais, mais empoeirados pelo desuso, um exemplar de lembrança antiga ainda apto a uma decente descrição. Não pude encontrar, pelos meus próprios esforços, o dito grupo de velhas fotografias neurológicas, e, muitíssimo decepcionado com a minha própria incapacidade, resolvi trapacear na minha empreitada, requisitando os prestativos auxílios de uma determinada assistente, única pessoa que possivelmente ainda deteria um compartimento mental que tratasse de convenientemente armazenar todos aqueles arquivos que há muito já haviam sido apagados por este meu inconsequente bolo de massa cinzenta: minha mãe (grande surpresa, não?). Com a ajuda dessa admirável mulher, tentei reconstruir uma memória breve relativa ao meu processo de alfabetização; este, tal como o define a seguinte citação, a qual diferencia os conceitos de alfabetização e letramento:

Alfabetização significa apenas a ação de ensinar/apreender a ler e a escrever, enquanto letramento diz respeito à condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva (dedica-se a atividades de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais também dessas mesmas habilidades) as práticas sociais que usam a escrita. (ROTTAVA, 2000, p. 12)

            Senhora L., minha auxiliar, afirma com considerável veemência (e um esboço de lágrimas nos olhos, talvez?) que fui presenteado com meu primeiro livro quando tinha eu nove meses de idade: um livreto impermeável, especificamente designado para que fosse desfrutado em meio a um relaxante banho de banheira, contendo em suas poucas páginas uma devidamente simples lição sobre a ideia de “opostos” (seco e molhado, alto e baixo, exemplos dessa natureza). Um adorável exemplar de literatura para pequeninos, certamente. Por conta própria, apenas podia ler o significado representado pelas ilustrações do querido livrinho; não conseguia fazer o mesmo com os componentes escritos da obra, no entanto.

A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto (KLEIMAN, 1995, p. 13)

            Não tinha ainda, por motivos bastante compreensíveis, o tal do conhecimento linguístico necessário para a leitura integral do meu primeiro livro; para que me fossem devidamente transmitidas as ideias das quais tratava a parte escrita do texto, minha mãe decifrava, em meio às bolhas de sabão que da pequena banheira surgiam, todas aquelas incompreensíveis sequências de símbolos coordenadas dentro de uma lógica por mim então ainda ignorada (sem antes me relembrar de intensamente fechar os olhos para que não fossem eles machucados após um indesejado contato com o xampu).
Segundo Britto (2012), decifrar e compreender são as duas ações básicas de ler. Pode-se dizer que, interpretando as gravuras impressas nas páginas à prova d’água e escutando as narrações de minha mãe quanto ao conteúdo do texto, apenas conseguia o pequeno eu compreender o significado geral a mim apresentado por aqueles escritos, ainda que não conseguisse decifrar, decodificar os signos ali grafados.
Iniciado o processo de mais próxima interação com os textos escritos, apenas três meses depois da aquisição do meu primeiro livro que algum outro fato de maior relevância se manifestou naquela minha trajetória de aprendizado.
            Segundo afirma a senhora L., fonte de inquestionável autoridade sobre este assunto ora comentado, com um ano e oito meses de idade seria eu presenteado com o livro que mais dramaticamente serviria como material de auxílio ao meu desenvolvimento enquanto jovem leitor: seria a primeira obra que conseguiria ler por conta própria; o primeiro livro por mim a ser lido sem o auxílio de qualquer adulto. Infelizmente, não me recordo do título de tão amado livro, mas muito bem me lembro da história que por ele era contada: tratava-se da vida de um jovem “raposinho” e das suas aventuras em meio aos outros animais da floresta em que vivia (simples o suficiente para que não seja necessário um mais elaborado resumo, creio eu).
            Praticamente todas as noites (raras foram as exceções), antes de dormir, pedia à minha mãe que me contasse uma história qualquer, e certamente em mais da metade dessas noites o texto narrado era aquele que dentro do dito livrinho havia sido impresso; era, verdadeiramente, a minha história favorita. Sentado entre as pernas de minha mãe, seus braços posicionando o livro aberto logo à minha frente, de modo que eu pudesse admirar as ilustrações das coloridas páginas, escutava eu, mais uma vez, a bendita fábula de Ferrugem, o tal raposinho. Tanto escutei aquela bela história infantil, que em determinado momento já sabia de cor todo o texto apresentado pelo livro, lendo-o em uníssono com a voz da senhora L. Naturalmente, a cada releitura que fazia, associava à minha leitura do texto novos conhecimentos, os quais eram por mim adquiridos no meu dia-a-dia, de maneira semelhante à comentada em ROTTAVA (1998):

...o leitor interage com o texto de diversas maneiras: através dos níveis da língua no interior do próprio texto, das relações com outros textos, das experiências, do propósito do leitor e do seu papel social e do contexto em que o texto foi produzido. (ROTTAVA, 1998, p. 62)

            A relevância maior desse processo de diferentes leituras de um mesmo texto foi a de que, com o passar do tempo, comecei a “sincronizar” minha reprodução oral sistemática da história com as letras e frases escritas relativas à fábula. Já dominando o alfabeto há algum tempo (desde que ganhei o livro, mais precisamente), comecei a relacionar sons com símbolos, e, por fim, símbolos com outros símbolos, decifrando e compreendendo palavras e frases escritas. Não mais precisava do auxílio de minha mãe para reler a história de Ferrugem, mas ainda pedia a ela que me narrasse novamente o pequeno conto (não tinha motivos para desprezar a sua companhia, afinal de contas).
Aprendi a ler (e, posteriormente, a escrever), portanto, sob a tutela de uma mulher, diversas sessões de banho, uma raposa e um instinto curioso natural a todos os pequenos jovens. Possivelmente, de forma muito dessemelhante se daria esse meu aprendizado não fosse a minha insatisfação enquanto criança com o famigerado “era uma vez...”; não me satisfazia com apenas uma vez; queria uma, duas, três... quantas me fossem necessárias, realmente.


Referências
BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura: Acepções, sentidos e valor. In: Nuances: estudos sobre educação, v.21, nº 22, jan./abr. 2012, p. 20.
KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. 4ª. Ed. Campinas, SP: Pontes, 1995, p. 13.
ROTTAVA, Lucia. A Leitura e a Escrita na Pesquisa e no Ensino. In: Espaços da Escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, nº 27, jan/mar. 1998, p. 62.
ROTTAVA, Lucia. A Importância da Leitura na Construção do Conhecimento. In: Espaços da Escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, nº 35, jan/mar. 2000, p. 12.



  

           
           
             
              

            

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