Reescrita
Por Aluno 37
A pilha
de louça suja - um obstáculo intransponível à abertura da água na pia,
eventualmente, dado o fato de que ela nunca para de crescer. Analisando este detalhe com uma admirável
consciência do seu dever, além de somar que seu odor tornar-se-á desagradável,
sua visagem aterrorizante e a louça limpa escassa, ou – na pior das hipóteses –
inexistente, uma pessoa decidida chegaria à conclusão que sua limpeza é algo
necessário à saúde pública. Ainda assim, além de não ser um trabalho para
fracos, nossa fé não pode mover estas montanhas – ninguém além dos ousados, aqueles que têm brio e vontade
inabaláveis, toma sob as costas tal empresa odisseica.
Resguardando
sua coragem até o ponto do enfrentamento, o ousado
aproxima-se dela, cauteloso – mede seu tamanho, compara-o com suas forças e
tempo disponíveis. Protege-se então com seu avental acolchoado, põe grilhões
nos cabelos selvagens quando estes desejam auxiliar o oponente, arma-se de
esponja de ou espuma ou de aço, detergente e água escaldante – e, quando de
tato sensível, reforça suas mãos com luvas protetoras. Quando sente a
necessidade de uma inspiração artística, ninguém o tomará por fraco se recorrer
à 9ª de Beethoven ou à “Cavalgada das
Valquírias”, de Wagner – mormente
pelo incentivo de lembrar-se que não há grandes homens e mulheres que não
padeceram em terríveis momentos. Certificando-se, finalmente, que o escorredor
aguentará o peso à ele confiado, põe-se aquele ousado ao seu trabalho.
Primeiramente,
classifica ele os utensílios de acordo com a gravidade da sujeira –
quase-limpos-mas-não-reutilizáveis, não tão limpos, e os mais sujos do que
limpos. Purga suas manchas e dejetos teimosos sempre do mais próximo de seu
ideal de limpeza ao extremo oposto – com sua água desligada, antes que
extermine um inimigo para enfrentar outro, mais cruel e que não desaparecerá à
base de sabão e esfregões (por mais que desejemos), que nos atormenta ao final
de todos os meses. Evita o uso de abrasivos em frigideiras de teflon: pois esse revestimento, mesmo
com sua finalidade prática, intoxica o alimento se nele misturado. E, quando
devidamente absolvidos de seus pecados, os corpos já sem vida são jogados
naquela vala comum erroneamente chamada de balcão da cozinha, enquanto esperam
seu agudo olhar de inspetor do necrotério para aprová-los ou reprová-los na
estrada rumo ao seu descanso final – o ralo da pia. Talvez encontrem-se alguns
ainda naquele estado penitente, e logo o ousado
vê-se obrigado a repetir o processo – tantas vezes quantas forem necessárias.
Agredida assim (porém não injustamente) nossa porcelana, é após banhada na
purificadora água da torneira – tomemos por analogia o rio Lete da mitologia
clássica, donde os espíritos bebiam da água do esquecimento, e renasciam ao
transpor sua margem.
Este
processo, visto não ser de pouca complexidade, pode sugerir aos não-tão-ousados determinados atalhos –
existirão sempre máquinas de lavar louça, trabalhadores versáteis e corajosos
que expõe-se diariamente ao que muitos não toleram (vulgarmente chamados de diaristas), e, nos mais graves dos
casos, o cesto de lixo ou a janela. Ainda há os dotados de dons teatrais; sob o
astuto ardil de emoções fortes, encurtam eficientemente seu trabalho ao atirar
a louça ou à porta, ou à parede.
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