sexta-feira, 27 de junho de 2014

Oferendo, a um peixe, copos d’água

Reescrita
Por Aluno 37



Nasci já esperado – primogênito. Felizmente, em meio a um ambiente abastado e, em maior ou menor escala, culturalmente estimulante; se falo vagamente, é porque lembro-me da natureza dúbia deste estímulo cultural. Meu avô materno foi o último de uma linha de pastores, e um muito ligado às literalidades da Igreja Luterana; e minha mãe acabou por herdar sua particular voragem literária. Meu pai, também - apesar de um prático engenheiro – nunca se demonstrou conformado com o tamanho de sua biblioteca.
Cresci, portanto, do início da infância ao final da adolescência, rodeado primeiro da onipresença da literatura, e segundo dos mitos de Cristo – de uma veracidade incompreensível, para mim, já que Hércules nunca caçou a Hidra de Lerna e Wotan, nunca construiu seu grande Valhalla. Minha grande missão, enquanto pequeno, foi desmistificar todo aquele estímulo cultural de que me alimentavam nas devoções após o almoço, de um Pai que é ao mesmo tempo seu Filho e seu Espírito, que multiplica pães e peixes para depois deixar tantos morrerem de fome, e que nos observa de tão longe e está sempre tão presente em todas as cousas.
Este mundo literário profundamente arraigado na mentalidade cristã de meus pais trouxe-me, até aproximadamente meados dos meus dezoito anos, uma asquerosa repulsa por toda expressão artística digna da menor consideração intelectual; eu via nas artes plásticas, na música erudita – até na Literatura! – uma reprodução daquela atmosfera opressiva e indesejada. Vivia como um peixe no aquário, sendo oferecido um copo d’água: entendia, da maneira mais ignorante possível, “que é o leitor quem dá sentido ao texto: seriam suas escolhas e projeções o cerne da significação ou significações que emergiriam no ato leitor” (BRITTO, 2012, p. 19).
Aos dezoito, recém-formado no Ensino Médio e aflito tanto pela escolha da carreira a seguir quanto por meus problemas familiares, conheci S. - alguém que seria a fonte, pouco mais tarde, de um conflito de tal forma arrebatador que pôs em questão minha própria leitura de mundo – ainda assim, não posso deixar de sentir gratidão ao olhar para trás. Uma mulher dotada de um gosto por Literatura, para mim, incompreensível - até o momento onde decidi tentar partilhá-lo: primeiramente como uma forma de aproximação; pouquíssimo mais tarde, o ato tornou-se como um fungo em um velho e esquecido tronco – devido à fartura de matéria, multiplicava-se prodigiosamente. Nosso relacionamento terminou dentro de pouquíssimos meses, em parte por estarmos envolvidos com extenuantes estudos: eu, me preparando para o vestibular de Engenharia da Computação, e ela, vivenciando um final de semestre no seu curso universitário; tendo vinte e dois anos, tive de entender o que, afinal, realmente significávamos um para o outro. O legado deixado por ela, no entanto, renova-se até hoje – a Literatura, amante desde então sempre presente tanto em minha cabeça quanto na cabeceira da cama, travestida em Tolkien, Jorge Amado ou – não menos adorado – George Martin. A partir de então, passei a viver exatamente da forma inversa à qual estava acostumado: era como um peixe, mas sem aquário – aqueles copos d’água tornaram-se meu pão de cada dia.
            Atormentado pela religiosidade do lar (e me esforçando para tentar compreendê-la – estado em que permaneço até hoje), tendo enfrentado o final daquela relação que tanto significou para mim, e lidando com a crise existencial decorrente da brusca evolução de gosto, decidi tentar me afastar do ambiente familiar. Pouco depois, recebi um convite de meus tios para ir morar em São Paulo: e fui-me embora para a Pasárgada de meus delírios mais juvenis do que adultos, em meus dezenove anos de idade. A graduação em Letras, aquela mulher a qual eu desejava, permaneceria, porém, velada em erotismo – a cama que eu escolhi, a Universidade de São Paulo, mostrava-se fria e dura como se feita de puro mármore. E a causa dessa aventura ter-se tornado de tal modo inconsequente deve-se ao Rei, meu tio, ter-se mostrado em demasiado meu amigo: pois teve o bom senso que eu não tive ao proibir-me, terminantemente, de buscar meu contento - exposto logo que cheguei em sua casa - enquanto seu hóspede. O que acabava de acontecer foi, para minhas ideias, um aborto tão tremendo que tive o desgosto de, logo após, tentar retomar a antiga inclinação profissional: o curso de Engenharia da Computação. Isto se tornou, ao menos, algo que me rendeu a satisfação de estar afastado, um pouco mais, de Porto Alegre. Mas o semestre deste ocorrido significou, para mim, o que Dante deve ter sentido ao atravessar todos os círculos do Inferno – o horror e o sofrimento de vislumbrar uma vida afastada da luz cultural, tragada por qualquer vício escuro de tão distante daquela; odiando este vício e o adorando. Incapaz de compreender aquela verdadeira manifestação do amor divino que minha Beatriz – Literatura, dama ausente! – fazia brilhar como topázios doirados até as páginas mais bolorentas.
            Meus tios acabaram por não desenvolver o mesmo gosto cultural de meu avô, além de que sua casa não era um ambiente próprio para qualquer atividade que necessitasse de silêncio. Por vezes, até me parecia que seus costumes não evoluíram desde sua própria mudança de Porto Alegre à São Paulo, quando (segundo as lembranças de minha mãe e os álbuns de família) assemelhava-se a um hippie em aparência, temperamento e espírito. Tal como o conceito de leitura de mundo exposto por Freire, a assimilação daqueles valores intelectuais expostos em meu núcleo familiar desde a aurora de minha infância permitiu “o reconhecimento e a percepção da vida-vivida, desde as experiências subjetivas mais íntimas até as relações sócio históricas mais complexas” (BRITTO, 2012, p. 24); apresentando, também, a “possibilidade de cada um [...] de dizer aquilo que era e de projetar o futuro, [...] modificando as formas de poder ser (ibid.). Eu sabia, portanto, que não era lá o meu lar – e um ano tolerando música alta, hóspedes bêbados usufruindo da cama em que dormia e constantes reclamações referentes à “não estar me divertindo” me proporcionaram até saudades de tragar hóstias com vinho barato na Santa Ceia.
Exatamente da mesma forma que Deus, para Dante, era incompreensível por razão somente, e, também, conforme Beatriz expôs em meio aos doces ares do Éden: eu não poderia compreender tanto o Cristianismo quanto a Literatura - e suas inter-relações - sem as impiedosas lições dos pecadores no Inferno. Minha sina, como descobri então estar sendo mal interpretada, me fornecera a maturidade necessária para entender o real processo de formação do indivíduo decorrente do ato de leitura.
Voltei, portanto, à Porto Alegre; ou, melhor posto, um outro homem voltou no lugar daquele. Minha família recebeu-me calorosamente – desta vez, surpreendentemente sem mais devoções e cultos forçados. Eu estava livre para trilhar a estrada que mais me aprouvesse – e não foi uma surpresa quando reiterei meu desejo por cursar Letras. Mas, se não houve surpresa, houve admiração: o tom da voz, alto e firme – não mais de um desafiante rebelde qualquer – e a postura ao expor minhas ânsias traíram alguma profunda mudança em mim.
Foi minha peregrinação, ao final, que me permitiu voltar aos braços da Literatura – não mais como um marido respeitoso a ocupar o lado frio de um leito, mas como o amante que sorrateiramente penetra através da janela após tempo demais ausente: mesmo tão esperado, ainda ousadamente inconsequente - ao entregar, desconsiderado, sua vida; mas, sobretudo, bem-vindo.

Referências Bibliográficas



BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura: Acepções, sentidos e valor. Nuances: estudos sobre Educação. Ano XVIII, v. 21, n. 22, p. 18-32, jan. /abr. 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário