Reescrita
Por Aluno 37
Nasci
já esperado – primogênito. Felizmente, em meio a um ambiente abastado e, em
maior ou menor escala, culturalmente estimulante; se falo vagamente, é porque
lembro-me da natureza dúbia deste estímulo
cultural. Meu avô materno foi o último de uma linha de pastores, e um muito
ligado às literalidades da Igreja Luterana; e minha mãe acabou por herdar sua
particular voragem literária. Meu pai, também - apesar de um prático engenheiro
– nunca se demonstrou conformado com o tamanho de sua biblioteca.
Cresci,
portanto, do início da infância ao final da adolescência, rodeado primeiro da
onipresença da literatura, e segundo dos mitos de Cristo – de uma veracidade
incompreensível, para mim, já que Hércules nunca caçou a Hidra de Lerna e Wotan, nunca construiu seu grande Valhalla. Minha grande missão, enquanto
pequeno, foi desmistificar todo aquele estímulo
cultural de que me alimentavam nas devoções após o almoço, de um Pai que é
ao mesmo tempo seu Filho e seu Espírito, que multiplica pães e peixes para
depois deixar tantos morrerem de fome, e que nos observa de tão longe e está
sempre tão presente em todas as cousas.
Este
mundo literário profundamente arraigado na mentalidade cristã de meus pais
trouxe-me, até aproximadamente meados dos meus dezoito anos, uma asquerosa
repulsa por toda expressão artística digna da menor consideração intelectual;
eu via nas artes plásticas, na música erudita – até na Literatura! – uma
reprodução daquela atmosfera opressiva e indesejada. Vivia como um peixe no
aquário, sendo oferecido um copo d’água: entendia, da maneira mais ignorante
possível, “que é o leitor quem dá sentido ao texto: seriam suas escolhas e
projeções o cerne da significação ou significações que emergiriam no ato
leitor” (BRITTO, 2012, p. 19).
Aos
dezoito, recém-formado no Ensino Médio e aflito tanto pela escolha da carreira
a seguir quanto por meus problemas familiares, conheci S. - alguém que seria a
fonte, pouco mais tarde, de um conflito de tal forma arrebatador que pôs em
questão minha própria leitura de mundo
– ainda assim, não posso deixar de sentir gratidão ao olhar para trás. Uma
mulher dotada de um gosto por Literatura, para mim, incompreensível - até o
momento onde decidi tentar partilhá-lo: primeiramente como uma forma de
aproximação; pouquíssimo mais tarde, o ato tornou-se como um fungo em um velho
e esquecido tronco – devido à fartura de matéria, multiplicava-se
prodigiosamente. Nosso relacionamento terminou dentro de pouquíssimos meses, em
parte por estarmos envolvidos com extenuantes estudos: eu, me preparando para o
vestibular de Engenharia da Computação, e ela, vivenciando um final de semestre
no seu curso universitário; tendo vinte e dois anos, tive de entender o que,
afinal, realmente significávamos um para o outro. O
legado deixado por ela, no entanto, renova-se até hoje – a Literatura, amante
desde então sempre presente tanto em minha cabeça quanto na cabeceira da cama,
travestida em Tolkien, Jorge Amado ou – não menos adorado – George Martin. A
partir de então, passei a viver exatamente da forma inversa à qual estava
acostumado: era como um peixe, mas sem aquário – aqueles copos d’água
tornaram-se meu pão de cada dia.
Atormentado pela religiosidade do lar (e me esforçando
para tentar compreendê-la – estado em que permaneço até hoje), tendo enfrentado
o final daquela relação que tanto significou para mim, e lidando com a crise
existencial decorrente da brusca evolução de gosto, decidi tentar me afastar do
ambiente familiar. Pouco depois, recebi um convite de meus tios para ir morar
em São Paulo: e fui-me embora para a Pasárgada de meus delírios mais juvenis do
que adultos, em meus dezenove anos de idade. A graduação em Letras, aquela
mulher a qual eu desejava, permaneceria, porém, velada em erotismo – a cama que
eu escolhi, a Universidade de São Paulo, mostrava-se fria e dura como se feita
de puro mármore. E a causa dessa aventura ter-se tornado de tal modo
inconsequente deve-se ao Rei, meu tio, ter-se mostrado em demasiado meu amigo:
pois teve o bom senso que eu não tive ao proibir-me, terminantemente, de buscar
meu contento - exposto logo que cheguei em sua casa - enquanto seu hóspede. O
que acabava de acontecer foi, para minhas ideias, um aborto tão tremendo que
tive o desgosto de, logo após, tentar retomar a antiga inclinação profissional:
o curso de Engenharia da Computação. Isto se tornou, ao menos, algo que me
rendeu a satisfação de estar afastado, um pouco mais, de Porto Alegre. Mas o
semestre deste ocorrido significou, para mim, o que Dante deve ter sentido ao
atravessar todos os círculos do Inferno – o horror e o sofrimento de vislumbrar
uma vida afastada da luz cultural, tragada por qualquer vício escuro de tão
distante daquela; odiando este vício e o adorando. Incapaz de compreender
aquela verdadeira manifestação do amor divino que minha Beatriz – Literatura,
dama ausente! – fazia brilhar como topázios doirados até as páginas mais
bolorentas.
Meus tios acabaram por não desenvolver o mesmo gosto
cultural de meu avô, além de que sua casa não era um ambiente próprio para
qualquer atividade que necessitasse de silêncio. Por vezes, até me parecia que
seus costumes não evoluíram desde sua própria mudança de Porto Alegre à São
Paulo, quando (segundo as lembranças de minha mãe e os álbuns de família)
assemelhava-se a um hippie em
aparência, temperamento e espírito. Tal como o conceito de leitura de mundo exposto por Freire, a assimilação daqueles valores
intelectuais expostos em meu núcleo familiar desde a aurora de minha infância
permitiu “o reconhecimento e a percepção da vida-vivida, desde as experiências
subjetivas mais íntimas até as relações sócio históricas mais complexas”
(BRITTO, 2012, p. 24); apresentando, também, a “possibilidade de cada um [...]
de dizer aquilo que era e de projetar o futuro, [...] modificando as formas de
poder ser (ibid.). Eu sabia,
portanto, que não era lá o meu lar – e um ano tolerando música alta, hóspedes
bêbados usufruindo da cama em que dormia e constantes reclamações referentes à
“não estar me divertindo” me proporcionaram até saudades de tragar hóstias com
vinho barato na Santa Ceia.
Exatamente
da mesma forma que Deus, para Dante, era incompreensível por razão somente, e,
também, conforme Beatriz expôs em meio aos doces ares do Éden: eu não poderia
compreender tanto o Cristianismo quanto a Literatura - e suas inter-relações -
sem as impiedosas lições dos pecadores no Inferno. Minha sina, como descobri
então estar sendo mal interpretada, me fornecera a maturidade necessária para
entender o real processo de formação do indivíduo decorrente do ato de leitura.
Voltei,
portanto, à Porto Alegre; ou, melhor posto, um outro homem voltou no lugar
daquele. Minha família recebeu-me calorosamente – desta vez, surpreendentemente
sem mais devoções e cultos forçados. Eu estava livre para trilhar a estrada que
mais me aprouvesse – e não foi uma surpresa quando reiterei meu desejo por
cursar Letras. Mas, se não houve surpresa, houve admiração: o tom da voz, alto
e firme – não mais de um desafiante rebelde qualquer – e a postura ao expor
minhas ânsias traíram alguma profunda mudança em mim.
Foi
minha peregrinação, ao final, que me permitiu voltar aos braços da Literatura –
não mais como um marido respeitoso a
ocupar o lado frio de um leito, mas como o amante que sorrateiramente penetra
através da janela após tempo demais
ausente: mesmo tão esperado, ainda ousadamente inconsequente - ao entregar,
desconsiderado, sua vida; mas, sobretudo,
bem-vindo.
Referências Bibliográficas
BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura: Acepções, sentidos e
valor. Nuances:
estudos sobre Educação.
Ano XVIII, v. 21, n. 22, p. 18-32, jan. /abr. 2012.
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