terça-feira, 24 de junho de 2014

Memorial de leituras de uma letrista

Reescrita
Por Aluno 17


Não consigo lembrar-me exatamente do primeiro livro que li, ganhei ou comprei. Que dirá lembrar o primeiro livro que leram para mim. Às vezes fico tentando buscar na memória respostas para perguntas como estas, tentativas falhas. Embora não saiba nada das primeiras, eu lembro perfeitamente da história dos 7 cabritinhos contada por minha mãe milhões de vezes antes de eu e meu irmão dormirmos. Ela não contava a história real, inventava tantas coisas que lendo a história “de verdade” não reconheço. Mas a de minha mãe era muito melhor, acabava com a mamãe cabritinha recuperando os filhos e dando tantas palmadas no lobo que ele não conseguiria mais sentar, e depois disso a mamãe e os 7 cabritinhos iam todos fazer um lanche no McDonalds!
Eu cresci, não rodeada por livros como gostaria de dizer, mas com fácil acesso a muitos deles. Conheci os irmãos Grimm bem cedo ouvindo minha mãe contá-los, e quando, hoje, pego alguma de suas histórias, sinto familiaridade, não sei como termina nem nada parecido. Lembro que, quando criança gostava muito das figuras nos livros e criava desafios nos quais adivinhava a história somente pelas gravuras. Minha mãe era a juíza, e hoje penso que provavelmente se deixava levar pelo natural favoritismo. Impossível eu ter acertado todas as vezes.
Tenho até hoje uma coleção da Disney chamada Uma História Por Dia. Os volumes são divididos pelas estações do ano e, nossa, como eu gostava desta coleção. Eu nunca lia só uma história por dia, quando pegava o livro lia pelo menos cinco delas. Minhas preferidas eram as do pateta, eu tinha uma simpatia enorme pelo personagem atrapalhado e sentimental, embora meu ursinho de dormir fosse o Mickey vestido de mágico. Sempre me apeguei a personagens, eram eles que me faziam gostar ou não de um livro.
A mais longa fase em minha trajetória como leitora até hoje com certeza foi a de ler quadrinhos. Para ser sincera, essa fase perdura até hoje. Comecei com as de super heróis, que são a maioria, experimentei diversas histórias em quadrinhos diferentes, como turma da Mônica, Calvin e Haroldo, Tex, etc., mas minha paixão pelos super heróis sempre prevaleceu. Eu costumava ler qualquer uma que me aparecesse, não me preocupava se estava lendo na sequência correta, não me importava com a continuação das histórias nem em saber o que teria acontecido antes. Isso mudou com o tempo, hoje em dia, por exemplo, eu só começo a ler uma história nova se tenho certeza que conseguirei ir até o final.
Passada minha febre de HQs, eu queria ler romances, os que eu tinha em casa eram romances espíritas (consequência de minha mãe seguir a doutrina espírita), então eram esses que eu lia. Minha mãe, nessa época, por volta de meus 10 anos, costumava pegar muitos livros emprestados com amigos, e eu os devorava todos sem exceção. Eram emprestados e nós éramos duas e portanto, as leituras tinham que fluir para que a devolução não demorasse. Comecei a cansar dos romances espíritas. Os enredos parecidos e os desfechos quase sempre iguais me desgastaram um pouco.
Conheci Harry Potter pelos filmes, assisti desde o primeiro no cinema, só mais tarde fui me interessar pelos livros da série. Lembro como eram caros, e ainda hoje são. Minha mãe comprou o 1º volume da série em um sebo e foi  com ele que comecei minha “coleção” de livros. Eu já possuía alguns livros, mas nunca tinha sentido necessidade de manter algum comigo depois de lê-lo, guardar em uma estante e fazer dele um “enfeite”. Após o episódio Harry Potter meus pedidos de presentes passaram a ser livros sempre, trocava até o chocolate da páscoa por mais livros.
Mudei de escola com 11 anos, nessa nova havia uma biblioteca enorme, diferente da antiga escola. Passava todo o tempo livre dentro da biblioteca; -descobri nessa biblioteca um de meus livros favoritos até hoje: “Depois daquela viagem de Valéria Polizzi”. Foi um livro totalmente diferente do que já tinha lido até então, era algo real, uma história verídica. A personagem/autora tinha contraído HIV de verdade, provavelmente por esse motivo  enxerguei-o como favorito. Confesso que ainda não adquiri meu exemplar deste livro, mas pretendo. Nunca reli o livro, provavelmente se o fizer não ache a história tão sensacional quanto achei anos atrás. Talvez nunca releia, para preservar a primeira impressão. Penso muito nisso, de reler livros, existem livros em minha opinião que perdem a beleza se lidos mais de uma vez, enquanto outros a cada releitura nos surpreendem e ensinam algo diferente (aprendi que esta segunda categoria denominamos: os clássicos).
Quando comecei a comprar livros minhas indicações normalmente vinham de outros livros. Também adorava passar horas dentro de livrarias escolhendo pelas capas, títulos ou sinopses. Conheci A Revolução dos Bichos de George Orwell com mais ou menos 14 anos, o nome me chamou a atenção e a sinopse mais ainda. Na primeira leitura achei sensacional, apesar de não saber do contexto histórico, nem 10% das referências e metáforas. Logo que acabei tive certeza de que era um clássico, aquela história era feita para ser relida. Eu reli A Revolução dos Bichos aproximadamente 5 vezes, praticamente uma vez por ano desde a primeira. É também um favorito, apesar de até hoje entender pouco do que ele realmente diz.
Lembro quando conheci Paulo Leminski. Meu professor costumava citar muito esse tal “poeta ‘margenial’”. Eu gostava muito do professor, o que me influenciou a querer conhecer o escritor. Li o livro inteiro com todas as poesias do autor, em duas visitas seguidas à livraria do shopping onde eu trabalhava. Só me dei conta de que ele já tinha morrido quando li no Wikipédia a data do falecimento. O fato de o livro ser a obra completa de poesias não me sugeriu que ele já não pudesse escrever mais por estar morto. Quando terminei de ler o livro eu só conseguia pensar “esse cara me conhece, ele sabe como eu penso. Como?”. Eu me senti decifrada. Leminski poderia ter sido meu melhor amigo. Na verdade, para mim é como se ele fosse. Quando me sinto perdida, sem saber o que pensar sobre algo, ou o que fazer a seguir eu pego o livro com a capa laranja fluorescente e um bigode esquisito desenhado nela, com as folhas abarrotadas de post its na lateral, abro o livro aleatoriamente, antes de olhar pra página escolho: direita ou esquerda, e ali na página aleatória está exatamente o que meu amigo Paulo gostaria de me dize naquele momento. Paulo adora metáforas, como todo poeta, e às vezes eu levo um tempo para decifrar o que ele quis me dizer, mas eu sempre me sinto melhor depois de “ouvi-lo”.
“ Há, neste caso, um objeto cultural bem definido (não se está diante da própria realidade, mas sim de uma representação dela ou de uma projeção de uma possibilidade) e há o interpretante, que busca encontrar sentido naquilo com que interage ...” (BRITTO, 2012, p. 25)
Também conheci Clarice Lispector, ou melhor, Macabéa personagem de A Hora da Estrela escrito pela Clarice. A história de Macabéa foi um soco no meu estômago. Depois de ler eu pensei “que mundo eu vivo onde não sei o que é isso?”, ou pior “que tipo de pessoa eu sou se sei que coisas assim existem e eu nem penso nelas”. Eu me referia à miséria, ignorância, fome, frio, etc. essas coisas que são uma droga e a gente quase nem liga. Foi a Macabéa que me ensinou isso quando eu tinha 16 anos.
“(...) se pode concluir que promover a leitura seria promover uma forma de pertencimento crítico ao mundo. Um valor, portanto. Um valor que carrega um princípio de humanidade e que implica, mais que o simples hábito, uma atitude. ” (BRITTO, 2012, p. 30)
Quando escolhi cursar letras com certeza a maior influência foi o gosto pela leitura, demorei a cogitar a possibilidade do curso. Sequer considerava-o quando passava o olho pelas enormes listas. Hoje em dia não entendo como demorei tanto para perceber que minha profissão poderia estar ligada a algo que eu já conhecesse e gostasse. Ainda no primeiro semestre do curso de letras tenho a certeza de que nunca conseguirei ler tudo aquilo que preciso, muito menos tudo o que desejo, é necessário estabelecer prioridades às leituras. Existem tantos livros que quero ler e tão pouco tempo para lê-los que pensar nisso é um tanto quanto angustiante. Prefiro não pensar.

Referências

BRITTO, Luiz Percival Leme. Leitura: Acepções, sentidos e valor. In: Nuances: estudos sobre educação. V.21, n. 22, p. 18-32, jan./abr. 2012.



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