quinta-feira, 26 de junho de 2014

Memorial de Leitura


1ª Versão
Por Aluno 15




“(...) Antes que me esqueça: na gaveta da cômoda há um maço de cartas que te escrevi de Nova Itália expressamente “para não te mandar”. Agora podes lê-las todas. Não encontrarás nada do meu passado, do qual nunca te falei e sobre o qual tiveste a delicadeza de não fazer perguntas. É pena. Gostaria que soubesses tudo, que visses como minha vida já foi feia e escura e como lutei e sofri para encontrar a tranquilidade e a paz de Deus.
Adeus. Sempre aborreci as cartas de romance que terminam de modo patético. Mas permite que eu escreva.
Tua para a eternidade,
Olívia.

Eugênio dobra a carta com todo carinho. Seus olhos estão inundados de lágrimas e ele encontra um esquisito prazer no sofrimento e na tristeza. (...)”

Esse trecho de “Olhai os Lírios do Campo”, escrito por Erico Verissimo, pareceu-me a melhor forma de iniciar essa trajetória pelas minhas vivências e de, a partir disso, construir um belo memorial de leituras.
            Se a memória não falha, conheci “Olhai os LÍrios do Campo” em um janeiro de intenso calor em meio ao mar e ao sol. Acredito que em 2009. Eu já era uma apaixonada pelas obras de Erico Verissimo - ele havia me conquistado com Clarissa, ainda em 2006 - mas foi somente em 2009 que tive o prazer de conhecer essa história tão fascinante, que veio pela indicação de uma professora de português e literatura da minha escola de ensino fundamental.
            Pois bem, lembro-me de estar deitada em uma rede verde, na casa da minha tia Ivete, quando abri o livro de capa amarela e preta. O primeiro parágrafo me chamou, imediatamente, a ler o resto da página, pelo menos. Isso que é, em minha concepção, autor bom. Aquele que pega a gente pela mão e diz: “vem, vem que tem muito mais para você aqui”. E eu fui.


“O médico sai do quarto nº 122. A enfermeira vem ao seu encontro.
- Irmã Isolda - diz ele em voz baixa -, avise o doutor Eugênio. É um caso perdido, questão de horas, talvez minutos. E ela sabe que vai morrer.
Silêncio. (...)”

Que incrível para uma menininha de 14 anos que só havia lido histórias infanto juvenis até então.

           Sabem, eu sempre gostei de ler. Meus pais sempre me presenteavam livros; a mim e a minhã irmã. Mas a importância dessa obra, em especial, é tamanha, porque foi dela que nasceu em mim o status de leitora. Sim, eu me tornara uma delas. Não havia mais salvação. Eu estava destinada a ser uma naquelas que nunca vai ter tempo para ler todos os livros que compra, nem todo o dinheiro que necessita para comprar todos os livros que quer, mas aquela que nunca vai deixar de ler. E eu leio tudo, desde literatura à instrução de rótulo de shampoo (preferindo, porém, a primeira opção). Enfim, agora você deve estar aí se debatendo de ansiedade querendo saber o porquê de tanta devoção após esse livro, que talvez não diga nada para você. Eu respondo: eu sou Olívia. Eu sou Eugênio[1]. Eles são eu e nós somos um só.
Pela primeira vez, em toda minha curta existência, eu havia “conhecido” pessoas que eram tão parecidos comigo. Mas eu não descobri isso logo aos 14 anos. Essa descoberta faço até os dias de hoje: sempre que me pego relendo aquelas páginas amareladas e reconheço ali um pouquinho mais de mim; de quem sou, do que amo, do que dói em mim, do que me faz criança e etc. São essas as sensações que só os livros - e nada mais - podem causar em pessoas como eu: leitoras.

Calça furada!
Calça furada-dá!”


Gritavam em cadência uniforme, batendo palmas. Eugênio sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Balbuciava palavras de fraco protesto, que sumiam devoradas pelo grande alarido.”

Olhem eu ali. Sim, eu estou bem ali. Não gritando em cadência uniforme, mas com a calça furada. Ali estou eu na escola, naquela tarde em que, sem querer, sentei em um banco que continha um prego “semi-pregado”, e eu, ao levantar bruscamente, rasquei a minha calça bem na “bunda”. Naquela época não existia o conceito de bullying. Mas foi bullying. E dos grandes. Fiquei sem ir à aula por uma semana, escondida na vergonha de ter uma calça rasgada em pleno recreio escolar.

“O dia mais importante da minha vida foi aquele em que, recordando todos os meus erros, achei que já chegara a hora de procurar uma nova maneira de ser útil ao próximo, de dar novo rumo às minhas relações humanas. Que era que eu tinha feito senão satisfazer os meus desejos, o meu egoísmo? Podia ser considerada uma criatura boa apenas porque não matava, porque não roubava, porque não agredia? A bondade deve ser uma virtude passiva. (...) Eu via ao meu redor pessoas aflitas que para se salvarem esperavam apenas uma mão que as apoiasse, nada mais do que isso. E Deus me dera duas mãos! (...)”

Ali estou eu, mais uma vez, nas palavras da sábia Olívia. Tudo que eu havia pensado, até então, era fazer uma bela faculdade de Medicina e ganhar um bom dinheiro para viajar, ter uma casa com muitos cachorros, marido, filhos e uma cozinha maravilhosa com louças Tramontina. Eu era péssima com biologia, odiava química e, de vez quando, me incomodo profundamente com sangue. Há, no mundo, muitos indivíduos que só precisam de uma mão que as apoiasse, e Deus me dera duas. Há inúmeras crianças que teriam chance, oportunidade e até “jeito” (como gostam de dizer os ignorantes) se alguém lhes estendesse às mãos. E assim, florescia em mim, quase que imperceptivelmente, uma visão distinta de mundo. Distinta do que eu, até então, considerava bom e razoável; assim como o que eu considerava ser horrível. Aprendi e nunca mais esqueci: a bondade deve ser uma virtude passiva.

Assim, todo esse reconhecimento com a obra, que fora retratado anteriormente, e os aprendizados que dela pude tirar nada mais são do que, conforme Paulo Freire (FREIRE apud BRITTO, 2012, p. 24), a persepção da vida-vivida. É a ampliação da forma de ser e perceber do mundo. Pois foi somente após essa leitura que muitos dos pré-conceitos que eu sutilmente tateava puderam se tornar conceitos, enfim. Reconhecer-se naquela cena tola de calça furada ou aprender uma lição de vida é, segundo Britto:
A leitura do mundo, desde as experiências subjetivas mais íntimas até as relações histórico-sociais mais complexas: a consciência delas e seu reconhecimento seriam condição fundamental para que a aprendizagem formal fosse instrumento de maior participação e de transformação da ordem social injusta.
(BRITTO, 2012, p.24).

Agora, porém, voltemos um pouco. Estamos em 2005. Já faz muito tempo... Não me recordo com precisão como se iniciou a minha leitura da saga “Junie B. Jones”[2]. Nem sei dizer, exatamente, o porquê de meus pais terem escolhido esses livrinhos para cumprirem o papel de serem minhas primeiras leituras. Só me lembro que eu possuía os cinco volumes de uma saga de livros que contavam as aventuras de Junie B. Jones, uma garotinha sagaz e impetuosa. Um detalhe importante é que esse livrinho continha inúmeras figuras, e a sua concretude era inquestionável.
Assim, o que mais me marcou em “June B. Jones” foi a forma com que eu comecei a ver e pensar as nuances do mundo. Através das figuras, que estavam em meio à história narrada, eu tinha a possibilidade de transportar-me para o outro mundo - o do livro. Assim, também afirma Britto (2012), “(...) A leitura de imagens trata-se de reconhecer um objeto cultura, que não é o mundo em si, mas uma forma de percebê-lo. Nesse contexto,  acredito que isso é de suma importância no letramento de uma criança, pois foi assim que, em minha educação, pude encontrar sentido e significação no ato de ler. Britto (2012) ilustra a razão da importância da leitura de imagens, “A pessoa, ao interagir com um livro de imagem em que se narra uma história tem de estabelecer relações, preencher vazios, acompanhar ações e perceber sentido nas formas dos traços.” O que, para mim, nada mais é do que um grande estímulo.
 Por terem se passado muitos anos desde as minhas leituras de Jones, o enredo das histórias sumiram de minha memória, porém as imagens se mantiveram. E foi justamente por isso que resolvi relatar essa obra aqui neste memorial. E o quão bonito foi a experiência de ver a leitura de imagens presente em minha mente até os dias de hoje.
             Diante disso, pude perceber que existem milhares de leituras que podemos realizar ao longo de nossa vida. Entre contas de luz e Dom Quixote de La Mancha; entre bula de remédio ou Senhora de José de Alencar. Cada leitura tem a sua função, importância e propósito. E quanto a isso, de nada importa as suas classificações. O importante é ler. E, é dessa maneira, que pretendo seguir minha vida, mantendo essa “mania” que me faz enxergar o mundo e sua realidade de formas tão distintas. O que me move são as palavras. E são elas que me guiam a construir, todos os dias, memoriais de leitura.


BIBLIOGRAFIA

BRITTO, Luiz Percival Leme. Nuances: estudos sobre Educação. Ano XVIII, v. 21, n. 22, p. 18-32, jan./abr. 2012
PARK, Barbara. Um pouco de xeretice. 1.ed. São Paulo: Arxjovem, 2004.
VERISSIMO, Erico. Olhai os lírios do campo. 4.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.




[1] Olívia e Eugênio são os protagonistas da obra “Olhai os Lírios do Campo”, publicada em 1938 por Erico Verissimo. Olívia e Eugênio são médicos, vivem um romance durante a graduação em Medicina, porém separam-se devido às ambições urbanas de Eugênio em ter prestígio e status social. Olívia vem a falecer, deixando para Eugênio, no entanto, uma filha, Ana Maria, e, ainda, uma lição de vida.
[2] “Junie B. Jones é uma saga norte americana de livros infantis escritos por Barbara Park. Foram publicados entre os anos de 1992 e 2007.

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