sábado, 28 de junho de 2014

Intercalando fantasia e obrigação.

Reescrita
Por Aluno 32


Ao tratar de minha experiência com leitura, é inevitável mencionar os ambientes familiar e escolar. Foram pais zelosos que leram histórias para mim antes de uma noite de sono, contando fábulas que despertaram minha imaginação. Foi no colégio que frequentei desde os quatro anos que tive acesso a uma biblioteca, na qual pude retirar livros que marcaram minha memória. Foi nele, também, que a leitura perdeu um pouco do seu charme quando se tornou uma obrigação. Foram esses os ambientes cruciais para que eu desenvolvesse o gosto pela leitura – e me afastasse dela quando era uma exigência e não um prazer.
Mesmo antes de ser alfabetizada, meus pais liam para mim e proporcionavam acesso às obras, sempre com o propósito do entretenimento, como Rottava (2000) aponta ser necessário. Os livros eram sempre permeados por ilustrações bonitas e coloridas, que ajudavam a prender minha atenção. A familiaridade com os livros de fantasia começou a ser construída nessa época, por meio da leitura de contos que apresentavam heroínas, magos e castelos, e minha preferência pelo gênero fantástico perdura até hoje.
Essa leitura voltada ao prazer despertou precoce interesse por aqueles escritos que ainda não eram compreendidos, o que acelerou o processo de alfabetização. Era incrível como aqueles amontoados de folhas com rabiscos em tinta podiam me conduzir a jornadas mágicas e inusitadas sem que eu saísse de minha confortável cama. Minha curiosidade foi despertada com as fábulas que eram lidas e com as ilustrações que eram mostradas, eu questionava, ao olhar páginas, placas, rótulos e letreiros, o que eles diziam, procurando relacionar as letras às pronúncias e as palavras aos significados. Sentia que precisava aprender logo a decifrar aqueles caracteres sozinha, para não depender de meus pais e poder ler sempre que eu quisesse e precisasse.
Durante a educação infantil e as séries iniciais do ensino fundamental, eram comuns idas à biblioteca, uma vez por semana, para a “hora do conto”, quando a bibliotecária ou a professora liam histórias para a turma. Nesses dias também podíamos ir até as estantes, folhear os livros, ver as ilustrações e locar o que quiséssemos. As idas à biblioteca se tornaram recorrentes durante toda minha vida escolar, além de um hábito mantido – e extremamente necessário – na faculdade. Algumas das leituras feitas nesses anos iniciais, com o intuito de mudar o comportamento das crianças, alertavam sobre os problemas que uma má higiene pessoal pode trazer à saúde e incentivavam crianças a manter hábitos saudáveis (“Sai, sujeira! ”, de Mick Manning, e “Próxima Parada: Estação Barriga! ”, de Anna Russelmann, por exemplo). A abordagem criativa desses livros, que transformavam enzimas digestivas e cáries em personagens próximos do imaginário infantil, era cúmplice na aquisição de bons hábitos. De acordo com os critérios propostos por Rottava (2000) para a seleção de materiais para leitura (promoção do conhecimento, autenticidade do texto, conteúdo familiar e interessante, nível adequado de linguagem, assuntos exploráveis no cotidiano do leitor), esses livros são boas escolhas para trabalhar com crianças e estimulá-las a ler.
Foram experiências como essas, com uma família presente, disposta a trazer ensinamentos e tirar dúvidas, em uma escola de boa qualidade, que meu conhecimento linguístico, textual e de mundo (KLEIMAN, 1995) começou a se desenvolver. Entretanto, conforme os anos passavam, as “horas do conto” iam ficando mais escassas, até que, na quarta série, pararam de acontecer. Meus pais também pararam de ler histórias para mim, visto que eu já conseguia fazer isso sozinha. Eu continuei a frequentar a biblioteca durante os recreios, e comecei pegar livros cada vez maiores – o que eu considerava um grande avanço de minha parte. O mesmo não acontecia com meus colegas, no entanto: eu notava a perda gradual de seu interesse pela leitura.
A partir da quarta série do ensino fundamental, os professores começaram a utilizar livros didáticos. Até a oitava série, os livros didáticos de português aplicavam a abordagem de leitura (ROTTAVA, 1998), em que cada unidade tratava de um gênero textual. Além disso, eram bem coloridos e todos os textos eram acompanhados por imagens que contribuíam para a significação (KLEIMAN, 2004). Entretanto, as unidades apresentavam sempre a mesma estrutura (imagem de abertura, texto característico de determinado gênero textual, questões de localização de informação mescladas com inferenciais, retomada de vocabulário da unidade e produção de um texto do mesmo gênero), o que acabava por torná-las maçantes e entediantes.
As professoras de português também usavam livros paradidáticos, que em grande parte das vezes não me agradavam. Essa prática supostamente incentivava a leitura, mas como eu já tinha o hábito presente, ter de parar de ler algo que eu tinha escolhido, para começar um livro que seria cobrado em uma prova, era frustrante. Observando esse método de ensino com os olhos de uma estudante de licenciatura, não vejo como a associação de “leitura” com “prova” poderia de alguma forma estimular qualquer um a ler, já que provas são vistas como atividades chatas, que exigem esforço. Se o objetivo era tornar a leitura um costume, um prazer para o aluno, relacioná-la a algo trabalhoso e incômodo deveria ser a última coisa feita por um professor.
Tendo a leitura se tornado um hábito – na maior parte das vezes prazeroso, salvo as ocasiões de prova – meu entretenimento sempre foi literatura fantástica, principalmente séries (tais como “Harry Potter” e “As crônicas de gelo e fogo”, grandes marcos em minha jornada literária). Essas leituras aumentaram minha prática com a ficção, e facilitam o entendimento de alguns livros trabalhados atualmente na faculdade, visto que contribuíram para a construção do meu conhecimento prévio (KLEIMAN, 1995). Permaneci durante a trajetória escolar inteira alternando entre as leituras obrigatórias e as prazerosas. No final do ensino fundamental, comecei a criar grandes expectativas com as aulas de literatura que ocorreriam ensino médio, esperando que fossem tão fantásticas quanto eu imaginava.
Não foram. Quando as aulas de literatura no ensino médio finalmente chegaram, utilizava-se o livro didático para apresentar a teoria sobre as escolas literárias, e focava-se principalmente na literatura brasileira. Eu gostava do estudo das escolas literárias, a professora falava sobre elas com tanto amor que me contagiava. Todavia, o caráter obrigatório que a leitura dos clássicos tomava, tendo de decorar nomes de personagens para fazer provas escolares e obter um bom resultado no vestibular, acabou por afastar minha preferência desses livros. Ainda assim, a experiência que tive com eles auxilia hoje na leitura de obras que são exigidas em algumas das cadeiras da universidade.
Outra experiência de leitura importante aconteceu por causa das aulas de geografia. O professor que lecionou essa disciplina durante o terceiro ano exigia trabalhos mais complexos. Para elaborá-los, tive contato pela primeira vez com artigos acadêmicos sobre assuntos como Revolução Verde e o uso de transgênicos. A leitura desses materiais demandava a pesquisa de conceitos básicos, já que eu não tinha conhecimento prévio dos assuntos que eram trabalhados neles. O breve contato que tive com esse modelo de escrita representa certa ajuda nas leituras que faço na universidade, pois ao menos adquiri um vocabulário básico para compreender esse gênero. As dificuldades que tive condizem com o que Rottava (2012) afirma sobre a leitura de textos acadêmicos:
“[...] as dificuldades dos leitores deste estudo, lendo um texto-base característico de contexto acadêmico, dizem respeito aos seguintes aspectos: pouca familiaridade com textos que circulam em contexto acadêmico; práticas de leitura variadas; a não neutralidade dos leitores (e escritores); e a necessidade para transitar teoricamente entre conceitos não conhecidos durante uma leitura. ” (p. 174)

Mesmo discordando de algumas abordagens da leitura no colégio, o gosto por ela prevaleceu e me fez optar pelo curso de Letras. Hoje, na universidade, minha dificuldade maior é a carga de leitura. Enquanto no ensino médio considerava que lia uma boa quantidade de livros, é complicado dar conta de tudo que me é exigido atualmente. A literatura de ficção predominante para meu entretenimento, e as obras da literatura brasileira lidas nas aulas do colégio possibilitam o entendimento dos livros exigidos nas cadeiras de Leituras Orientadas e Literatura Brasileira. A compreensão de artigos acadêmicos, no entanto, apresenta maior dificuldade, já que o único contato prévio com eles foi para a elaboração dos trabalhos de geografia, e por isso há falta de familiaridade com essa estrutura. Vejo que, conforme supero as complicações e conforme a quantidade de leituras que faço aumenta, desenvolvo mais meu senso crítico e percebo falhas mesmo em obras que eu acreditava serem impecáveis – mesmo com apenas um semestre de estudo. Acredito que, à medida que eu tiver contato com mais textos que atendem às qualidades discursivas, poderei melhor analisar as obras com que tiver contato e selecionar leituras cada vez mais construtivas.





Referências bibliográficas:
KLEIMAN, A. B. texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995, p. 7-27.
KLEIMAN, A. B. Abordagens da leitura. SCRIPTA, Belo Horizonte, Editora PUC-Minas, v. 7, n. 14, 1º sem 2004, p. 13-22.
ROTTAVA, L. A Leitura e a Escrita na Pesquisa e no Ensino. Espaços da Escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, a. 4, n. 27, jan.-mar. 1998, p. 61-68.
ROTTAVA, L. A Importância da Leitura na Construção do Conhecimento. Espaços da Escola, Ijuí, Editora UNIJUÍ, a. 9, n. 35, jan.-mar. 2000, p. 11-16.

ROTTAVA, L. A leitura em contexto acadêmico: o processo de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre do curso de Letras. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 37, n. 63, jul.-dez. p. 160-179, 2012.

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