Reescrita
Por Aluno 32
Ao
tratar de minha experiência com leitura, é inevitável mencionar os ambientes
familiar e escolar. Foram pais zelosos que leram histórias para mim antes de
uma noite de sono, contando fábulas que despertaram minha imaginação. Foi no
colégio que frequentei desde os quatro anos que tive acesso a uma biblioteca,
na qual pude retirar livros que marcaram minha memória. Foi nele, também, que a
leitura perdeu um pouco do seu charme quando se tornou uma obrigação. Foram
esses os ambientes cruciais para que eu desenvolvesse o gosto pela leitura – e
me afastasse dela quando era uma exigência e não um prazer.
Mesmo
antes de ser alfabetizada, meus pais liam para mim e proporcionavam acesso às
obras, sempre com o propósito do entretenimento, como Rottava (2000) aponta ser
necessário. Os livros eram sempre permeados por ilustrações bonitas e
coloridas, que ajudavam a prender minha atenção. A familiaridade com os livros
de fantasia começou a ser construída nessa época, por meio da leitura de contos
que apresentavam heroínas, magos e castelos, e minha preferência pelo gênero
fantástico perdura até hoje.
Essa
leitura voltada ao prazer despertou precoce interesse por aqueles escritos que
ainda não eram compreendidos, o que acelerou o processo de alfabetização. Era
incrível como aqueles amontoados de folhas com rabiscos em tinta podiam me
conduzir a jornadas mágicas e inusitadas sem que eu saísse de minha confortável
cama. Minha curiosidade foi despertada com as fábulas que eram lidas e com as
ilustrações que eram mostradas, eu questionava, ao olhar páginas, placas,
rótulos e letreiros, o que eles diziam, procurando relacionar as letras às
pronúncias e as palavras aos significados. Sentia que precisava aprender logo a
decifrar aqueles caracteres sozinha, para não depender de meus pais e poder ler
sempre que eu quisesse e precisasse.
Durante
a educação infantil e as séries iniciais do ensino fundamental, eram comuns
idas à biblioteca, uma vez por semana, para a “hora do conto”, quando a
bibliotecária ou a professora liam histórias para a turma. Nesses dias também
podíamos ir até as estantes, folhear os livros, ver as ilustrações e locar o que
quiséssemos. As idas à biblioteca se tornaram recorrentes durante toda minha
vida escolar, além de um hábito mantido – e extremamente necessário – na faculdade.
Algumas das leituras feitas nesses anos iniciais, com o intuito de mudar o
comportamento das crianças, alertavam sobre os problemas que uma má higiene
pessoal pode trazer à saúde e incentivavam crianças a manter hábitos saudáveis
(“Sai, sujeira! ”, de Mick Manning, e “Próxima Parada: Estação Barriga! ”, de
Anna Russelmann, por exemplo). A abordagem criativa desses livros, que
transformavam enzimas digestivas e cáries em personagens próximos do imaginário
infantil, era cúmplice na aquisição de bons hábitos. De acordo com os critérios
propostos por Rottava (2000) para a seleção de materiais para leitura (promoção
do conhecimento, autenticidade do texto, conteúdo familiar e interessante,
nível adequado de linguagem, assuntos exploráveis no cotidiano do leitor), esses
livros são boas escolhas para trabalhar com crianças e estimulá-las a ler.
Foram
experiências como essas, com uma família presente, disposta a trazer
ensinamentos e tirar dúvidas, em uma escola de boa qualidade, que meu
conhecimento linguístico, textual e de mundo (KLEIMAN, 1995) começou a se
desenvolver. Entretanto, conforme os anos passavam, as “horas do conto” iam
ficando mais escassas, até que, na quarta série, pararam de acontecer. Meus
pais também pararam de ler histórias para mim, visto que eu já conseguia fazer
isso sozinha. Eu continuei a frequentar a biblioteca durante os recreios, e
comecei pegar livros cada vez maiores – o que eu considerava um grande avanço
de minha parte. O mesmo não acontecia com meus colegas, no entanto: eu notava a
perda gradual de seu interesse pela leitura.
A
partir da quarta série do ensino fundamental, os professores começaram a utilizar
livros didáticos. Até a oitava série, os livros didáticos de português
aplicavam a abordagem de leitura (ROTTAVA, 1998), em que cada unidade tratava
de um gênero textual. Além disso, eram bem coloridos e todos os textos eram
acompanhados por imagens que contribuíam para a significação (KLEIMAN, 2004).
Entretanto, as unidades apresentavam sempre a mesma estrutura (imagem de
abertura, texto característico de determinado gênero textual, questões de
localização de informação mescladas com inferenciais, retomada de vocabulário
da unidade e produção de um texto do mesmo gênero), o que acabava por torná-las
maçantes e entediantes.
As
professoras de português também usavam livros paradidáticos, que em grande
parte das vezes não me agradavam. Essa prática supostamente incentivava a
leitura, mas como eu já tinha o hábito presente, ter de parar de ler algo que
eu tinha escolhido, para começar um livro que seria cobrado em uma prova, era
frustrante. Observando esse método de ensino com os olhos de uma estudante de
licenciatura, não vejo como a associação de “leitura” com “prova” poderia de
alguma forma estimular qualquer um a ler, já que provas são vistas como
atividades chatas, que exigem esforço. Se o objetivo era tornar a leitura um
costume, um prazer para o aluno, relacioná-la a algo trabalhoso e incômodo
deveria ser a última coisa feita por um professor.
Tendo
a leitura se tornado um hábito – na maior parte das vezes prazeroso, salvo as
ocasiões de prova – meu entretenimento sempre foi literatura fantástica,
principalmente séries (tais como “Harry Potter” e “As crônicas de gelo e fogo”,
grandes marcos em minha jornada literária). Essas leituras aumentaram minha
prática com a ficção, e facilitam o entendimento de alguns livros trabalhados atualmente
na faculdade, visto que contribuíram para a construção do meu conhecimento
prévio (KLEIMAN, 1995). Permaneci durante a trajetória escolar inteira
alternando entre as leituras obrigatórias e as prazerosas. No final do ensino
fundamental, comecei a criar grandes expectativas com as aulas de literatura que
ocorreriam ensino médio, esperando que fossem tão fantásticas quanto eu
imaginava.
Não
foram. Quando as aulas de literatura no ensino médio finalmente chegaram, utilizava-se
o livro didático para apresentar a teoria sobre as escolas literárias, e
focava-se principalmente na literatura brasileira. Eu gostava do estudo das
escolas literárias, a professora falava sobre elas com tanto amor que me
contagiava. Todavia, o caráter obrigatório que a leitura dos clássicos tomava,
tendo de decorar nomes de personagens para fazer provas escolares e obter um
bom resultado no vestibular, acabou por afastar minha preferência desses livros.
Ainda assim, a experiência que tive com eles auxilia hoje na leitura de obras
que são exigidas em algumas das cadeiras da universidade.
Outra
experiência de leitura importante aconteceu por causa das aulas de geografia. O
professor que lecionou essa disciplina durante o terceiro ano exigia trabalhos
mais complexos. Para elaborá-los, tive contato pela primeira vez com artigos
acadêmicos sobre assuntos como Revolução Verde e o uso de transgênicos. A
leitura desses materiais demandava a pesquisa de conceitos básicos, já que eu
não tinha conhecimento prévio dos assuntos que eram trabalhados neles. O breve
contato que tive com esse modelo de escrita representa certa ajuda nas leituras
que faço na universidade, pois ao menos adquiri um vocabulário básico para compreender
esse gênero. As dificuldades que tive condizem com o que Rottava (2012) afirma
sobre a leitura de textos acadêmicos:
“[...] as dificuldades
dos leitores deste estudo, lendo um texto-base característico de contexto
acadêmico, dizem respeito aos seguintes aspectos: pouca familiaridade com
textos que circulam em contexto acadêmico; práticas de leitura variadas; a não
neutralidade dos leitores (e escritores); e a necessidade para transitar
teoricamente entre conceitos não conhecidos durante uma leitura. ” (p. 174)
Mesmo
discordando de algumas abordagens da leitura no colégio, o gosto por ela
prevaleceu e me fez optar pelo curso de Letras. Hoje, na universidade, minha
dificuldade maior é a carga de leitura. Enquanto no ensino médio considerava
que lia uma boa quantidade de livros, é complicado dar conta de tudo que me é
exigido atualmente. A literatura de ficção predominante para meu entretenimento,
e as obras da literatura brasileira lidas nas aulas do colégio possibilitam o
entendimento dos livros exigidos nas cadeiras de Leituras Orientadas e
Literatura Brasileira. A compreensão de artigos acadêmicos, no entanto,
apresenta maior dificuldade, já que o único contato prévio com eles foi para a
elaboração dos trabalhos de geografia, e por isso há falta de familiaridade com
essa estrutura. Vejo que, conforme supero as complicações e conforme a
quantidade de leituras que faço aumenta, desenvolvo mais meu senso crítico e percebo
falhas mesmo em obras que eu acreditava serem impecáveis – mesmo com apenas um
semestre de estudo. Acredito que, à medida que eu tiver contato com mais textos
que atendem às qualidades discursivas, poderei melhor analisar as obras com que
tiver contato e selecionar leituras cada vez mais construtivas.
KLEIMAN,
A. B. texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 4. ed. Campinas: Pontes,
1995, p. 7-27.
KLEIMAN,
A. B. Abordagens da leitura. SCRIPTA, Belo Horizonte, Editora PUC-Minas, v. 7,
n. 14, 1º sem 2004, p. 13-22.
ROTTAVA,
L. A Leitura e a Escrita na Pesquisa e no Ensino. Espaços da Escola, Ijuí,
Editora UNIJUÍ, a. 4, n. 27, jan.-mar. 1998, p. 61-68.
ROTTAVA,
L. A Importância da Leitura na Construção do Conhecimento. Espaços da Escola,
Ijuí, Editora UNIJUÍ, a. 9, n. 35, jan.-mar. 2000, p. 11-16.
ROTTAVA, L. A leitura em contexto
acadêmico: o processo de construção de sentidos de alunos do primeiro semestre
do curso de Letras. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 37, n. 63, jul.-dez. p. 160-179,
2012.
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