Aluno 162
1 Versão
O bar cheirava a álcool e cigarro.
Na minha estranheza de ser humano, sempre achei esse odor intrigante, profundo
como uma esfinge gritando “decifre-me”. Essa era a atmosfera decadentemente
interessante que me atraiu aquela noite para o botequim: à procura de
inspiração, eu deixei que a brisa noturna de verão clareasse a minha mente
escolhesse por mim um bar, para que lá eu conseguisse desenvolver as páginas do
meu romance. Em um botequim qualquer,
sentei sozinha em uma mesa qualquer com um caderno qualquer e uma cerveja
qualquer.
Minha mente estava a divagar
calmamente sobre a importância da solidão, quando, por ironia do acaso, eles
entraram. Subitamente, eu não estava mais sozinha, minha atenção foi retirada de
meu caderno e levada a acompanhar a moça de cabelo rosa vibrante. Ela era
seguida por mais outra menina e três rapazes. O grupo sentou-se em uma mesa
enquadrada perfeitamente no meu campo de visão. Eu observei, então, como
através de uma moldura, o modo com que os cabelos castanhos da outra menina
eram cortados rente ao queixo e como seus braços envolviam confortavelmente o
homem barbudo de óculos. Meu olhar caminhou até os outros dois rapazes, os
quais sentaram-se a uma cadeira de distância da moça de de cabelo rosa, reparei
que um deles possuía uma armação de óculos transparente e o outro vestia uma
blusa estampada com besouros, peculiar, pensei.
Durante os 30 minutos que procederam a chegada do grupo,
eles pediram uma rodada de chope e, acredito eu, jogaram conversa fora. Apesar
da minha visão privilegiada, a distância
que eu me encontrava da mesa fazia com que chegasse a mim apenas o
típico burburinho de vozes entrelaçadas. Eu não conseguia decifrar o assunto da
conversa. Voltei minha atenção, pois, para a moça de de cabelo rosa, a cor de
suas madeixas havia me dado uma ideia para uma personagem. Comecei rapidamente
a trabalhar na construção de um parágrafo descritivo sobre Amélia, com medo de
que a inspiração momentânea fugisse da ponta do lápis. Porém, a moça de cabelo
rente ao queixo levantou a voz em tom de urgência, levantando junto a minha
atenção. Ela estava repreendendo o moço da
camiseta de besouros.
Nunca saberemos qual era a pauta da
discussão. Não importa. Poderia ser sobre qualquer coisa, desde o último livro
de Harry Potter à eleição para Presidente da República no ano seguinte. O que
realmente nos interessa era o padrão estabelecido no conflito: a moça de
madeixas roseas tentava falar, logo sua voz era abafada por um dos dois homens.
A moça de cabelo rente ao queixo tentava falar, mas era recebida com um
movimento de cabeça negativo pelos mesmos dois rapazes. Então o rapaz barbudo
falava e eles ficavam quietos, ouvindo. A moça de cabelo rosa tentava
aproveitar a deixa para expor seus argumentos, logo era calada.
Observando essa cena, fiquei muito
irritada e, acima de tudo, angustiada. Por que eles não estavam ouvindo as duas
moças? Por que a voz delas significava menos que a do rapaz barbudo? Por que eu
conseguia relacionar aquele acontecimento a várias ocasiões da minha própria
vida? Nessa noite, eu não fui presenteada com uma ideia para um “best seller”,
mas sim com três conceitos, as vezes desconhecidos, porém sempre muito
presenciados na vida de uma mulher. Apresento-lhes “manterrupting”,
“mansplaining” e “brotheragem”.
“Manterrupting” é o termo derivado
da junção das palavras “man” e “interrupting” , respetivamente, “homem” e
“interrupção”. Esse termo designa a mania irritante que os homens têm de
julgarem-se dignos de interromper a fala de uma mulher, apenas por serem, veja
bem, homens. Normalmente, esse fenômeno é seguido do “mansplaining”: novamente,
a junção de “man” (homem) e “explaining” (explicação), ou seja, o hábito
insuportável de os portadores dos
cromossomos XY acharem que sabem mais que uma mulher e, por isso, devem
explicar a ela algo muito óbvio de uma maneira muito simples, que eles presumem
ser “apropriada”. O mais irritante desse fenômeno é que, muitas vezes, os
homens tentam explicar justamente o que nós, mulheres, estávamos falando. É
como se eles dissessem “Não, não, não. Você, mulher, não entende isso da mesma
forma que eu, homem. Deixe-me lhe explicar…”.
Agora que você já conhece os dois
primeiros conceitos, vamos para o último. Lembra quando eu lhe disse que sempre
que o homem barbudo falava ele era ouvido? Então, esse incrível fenômeno
antropológico ocorre devido ao respeito mútuo nas relações estabelecidas de
homem para homem. É a famosa “brotheragem”, esse incrível fenômeno
antropológico ocorre devido ao respeito mútuo nas relações estabelecidas de
homem para homem. É um conceito abrasileirado e deriva da união de “brother” ao
sufixo “agem”, exprimindo a ideia de uma ação. Resumindo, homens irão sempre
proteger outros homens. Esses três fenômenos implicam que, seja em uma mesa de
bar ou em uma mesa de reunião, o discurso proferido por um portador dos
cromossomos XY sempre será mais ouvido, sempre mais considerado.
Enfurecida, levei a cerveja à boca,
estava quente e amarga, como aquela noite.
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