domingo, 18 de junho de 2017

Como comecei a escrever

Reescrita
Aluno 141


As memórias mais marcantes dos meus primeiros anos de vida foram passadas no último corredor da biblioteca do colégio em que cursei o ensino fundamental. Na época, eu tinha duas amigas muito próximas que compartilhavam o gosto pela leitura. Foi, provavelmente, em função dessas amizades que minha intimidade com os livros se fortaleceu. Nós éramos três meninas auto-intituladas donas do corredor da biblioteca, aquele entre os Atlas e os gibis, em que ninguém mais podia entrar sem a nossa permissão. Nesse universo de menos de dois metros quadrados, eu aproveitei os intervalos das aulas em busca de histórias que naturalmente me guiaram para a escrita. As amizades podem não ter sobrevivido ao fim do ensino fundamental, mas os hábitos das três meninas sentadas no chão com as pernas cruzadas continuaram vívidos.          
            Aos meus dez anos de idade eu já tinha lido livros o suficiente para compreender o poder de recordação existente na palavra escrita. Eu comecei a escrever em cadernetas e escondê-las para que as outras pessoas não tivessem acesso aos meus escritos. Por ter sido uma criança tímida, encontrar no diário uma figura ouvinte sem voz crítica me era extremamente reconfortante. Meus sentimentos eram tão claramente expostos nas páginas dos cadernos que minha mãe, receosa pelo comprometimento gerado pelas minhas palavras, chegou em uma ocasião a pedir encarecidamente para eu jamais levasse o meu diário para a sala de aula.
            Com o tempo, a brincadeira se tornou rotina para organizar as minhas emoções. Meus hábitos de escrita foram ficando cada vez mais exigentes: eu só conseguia escrever de noite, à mão e, preferencialmente, em dias chuvosos. Para a loucura de minha mãe, criei o gosto por recolher todas as almofadas do sofá de casa, espalhar pelo chão da sacada e ficar ali, escrevendo ao observar o movimento das pessoas pelas ruas de meu bairro.
            A escrita permaneceu como uma companheira necessária para compreender a realidade ao meu redor. Porém, nossa relação foi pouco a pouco sendo minada pelas exigências do escrever correto e padronizado. Eu cresci e comecei a trabalhar na área jurídica, imaginando que a minha cumplicidade com a escrita fosse me auxiliar nessa carreira. Logo na primeira semana, um dos meus colegas de trabalho me olhou torno ao descobrir o nome do meu supervisor. "Ele é cricri com a escrita", comentou com desgosto.
            Com o tempo, não só descobri ser verdadeiro o comentário, como também percebi não ser de todo ruim o perfeccionismo exigido. Meu chefe tinha o cuidado de sempre entregar meus pareceres repletos de comentários sobre a forma como eu escrevia e, consequentemente, aprendi muito no processo de reformulá-los. Mesmo assim, existia muito naquela escrita técnica e inflexível que me perturbava. Eu tinha vários papéis presos na parede em frente ao meu computador com palavras que eu estava proibida de utilizar nos pareceres por serem consideradas "feias". Sentia falta da escrita despretenciosa de meus diários, por isso, como refúgio nos meus dias mais cansativos, despia-me do formalismo nas folhas do diário que não se dirigia para ninguém se não a mim mesma.
            Em uma tentativa de resgatar a cumplicidade existente entre mim e a escrita, larguei o trabalho que ceifava as minhas palavras e matriculei-me em uma cadeira de escrita criativa. Durante as aulas, nós éramos convidados a projetar nossas criações para os demais presentes. Como primeira proposta, nós tivemos que transformar um texto não-literário em um texto literário. Eu projetei o meu texto e não tive a melhor das respostas. Entretanto, eu havia reencontrado em um contexto de coletividade a minha intimidade com a escrita, antes exercida somente por meio dos diários. Para alguém que via no escrever um processo intimista, ter que expor meus pensamentos de forma tão franca foi uma forma de abrir os horizontes.  
            Provavelmente, eu ainda vou colocar o meu velho diário na mochila ao arrumar meus materiais para ir à Universidade. Contudo, agora procuro na escrita um processo de constante aprimoração que não pode ser alcançado sem as temidas críticas com as quais aprendi a conviver por meio dos comentários de meu chefe e colegas. Se a maturação do meu relacionamento com a escrita me ensinou algo, é que meus escritos devem sair do fundo da gaveta e ganhar vida pelos olhos dos leitores.  

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