Aluno 148
Reescrita
Durante meus dezoito anos de vida, nunca conheci uma criança que não acreditasse em super-heróis. Desde muito cedo na infância somos apresentados à ideia da existência de pessoas que, munidas de superpoderes diversos, como teias de aranha incrivelmente resistentes que saem de seus pulsos ou um corpo forte como aço, podem salvar o mundo de suas mazelas. Consequentemente, passamos a acreditar com veemência em um mundo o qual essas pessoas existem e, inclusive, temos vontade de ser como elas. Então nossas mães e pais nos compram fantasias, máscaras, capas e assistem a seus filhos correndo pela rua com uma mão para cima e outra na cintura, mimetizando a imponência de Clark Kent ao sobrevoar os céus.
Porém, notem que na minha frase digo nunca ter conhecido uma criança que não acreditasse em super-heróis, porque ao longo do nosso crescimento vamos sendo instigados a abandonar essa crença. Isto acontecia comigo todas as incontáveis vezes em que eu caía no chão nas minhas brincadeiras e ralava os joelhos, preocupando minha mãe, que logo vinha com o discurso pouco dramático: “Uma hora tu vai cair de cabeça no chão e se machucar sério! Tu não é de ferro!”. Ouvi bastante esse discurso, mas ele entrava por um ouvido e saía pelo outro assim que ela terminava de me encher de curativos, porque na minha cabeça infantil eu era uma super-heroína e super-heroínas podiam fazer de tudo.
Quando eu era criança, Fernanda, minha mãe, saía para trabalhar todos os dias da semana de tarde e chegava só às onze horas da noite. Apesar disso ela conseguia, no pouco tempo livre que tinha, dar atenção para mim e meus irmãos; fazia o almoço, costurava minhas fantasias rasgadas, limpava a casa e conferia se meus machucados haviam cicatrizado. Naquela época, eu não tinha ideia do quão difícil era conciliar esses afazeres, os quais exigiam muita disposição e esforço, até porque para meu eu de mais ou menos sete anos, aquilo era simplesmente algo que mães faziam.
Aliás, nada na vida de minha mãe, mulher vinda de família humilde, foi fácil. Logo após ter se formado no Ensino Médio, com a mesma idade que eu ao escrever este texto ficou grávida da minha irmã e, quatro anos depois do meu irmão, e sete anos depois dele, de mim e, assim, foi impossibilitada de cursar o ensino superior, seu foco sendo cuidar de nós três. Entretanto, nunca reclamou da tarefa exaustiva que era lidar com seus filhos temperamentais e enérgicos e pode-se dizer que fez isso com excelência, pois hoje somos pessoas saudáveis, que raramente ficam doentes (ela se orgulha muito disso), estudiosas e felizes, sempre fazendo piadas.
Era natural que, depois de cuidar de nós por longos anos, era hora de Fernanda cuidar dela mesma. Eu tinha mais ou menos doze anos quando minha mãe, com quarenta, decidiu voltar a estudar, se inscrevendo para um curso de Técnica em Nutrição. Naquela época eu achei loucura porque, além do cansativo e mal-pago trabalho de telemarketing que tinha, ainda precisaria estudar, fazer provas e trabalhos, coisas que eu fazia e já achava um esforço imenso, imagina tendo que trabalhar oito horas por dia junto com tudo isso. Apesar disso ela foi, se inscreveu e acabou se formando mas, acredite, esse processo foi duro. Durante dois longos anos não foram raros os choros devido ao cansaço e estresse de um dia inteiro ouvindo clientes reclamando por telefone, nem as brigas ao chegar de noite com uma pilha de trabalhos do curso para fazer e ver que eu e meu irmão não tínhamos lavado a louça. E ainda sim, durante todo esse tempo, minha mãe acordava às cinco horas da manhã com uma energia que ninguém normal tem a essa hora, tomava seu farto café e, como Clark Kent, colocava seu óculos e se preparava para mais um dia.
Ao longo desse processo eu observei Fernanda fazer de tudo, assim como um super-herói. No entanto, ela não era daqueles clichês que eu via na televisão, os quais voavam pelo céu e tinham força suficiente para levantar cinco carros – seu superpoder era a capacidade de trabalhar, estudar, cuidar da casa e dar amor à família simultaneamente. Aos poucos, uma nova figura de super-heroína foi se materializando na forma da minha mãe, a qual não usava capa e nem máscara, dava a cara à tapa pelo mundo com seu grande coração e muita garra.
No final das contas, não precisei abandonar minha crença em super-heróis, apenas mudar seu conceito. Ok, talvez Fernanda não tenha ajudado as pessoas salvando mundo de algum vilão sinistro, contudo, ela ajudou a formar a pessoa que sou hoje, sendo um exemplo de perseverança e me mostrando que, apesar das adversidades, é possível conseguir o que quer. Logo passei a crer e me inspirar na mesma mulher que dizia para eu ter cuidado e não me machucar, mas que na luta contra o monstro da dupla-jornada de trabalho se machucou muitas vezes e apesar disso, assim como o herói mocinho, conseguiu sobreviver no final.
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