sábado, 3 de junho de 2017

Como comecei a escrever

Aluno 159
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Reza a lenda que aprendi a escrever aos três ou quatro anos. Eu continuo insistindo que nasci sabendo. Isso porque não me lembro da minha vida antes da escrita. Não tenho a mais vaga recordação da minha “pré-história”.
            Minha trajetória na literatura começou aos cinco anos quando escrevi um poema sobre o pôr-do-sol de Porto Alegre. Hoje chamo essa minha fase de “gauche-bairrista”. Aos seis anos, adaptei um texto de Ruth Rocha para uma peça teatral. Maravilhado com a dramaturga promissora que tinha como filha, meu pai me deu de presente uma peça de Henrik Ibsen, “A Casa de Bonecas”. Ironicamente, acabei por abandonar a dramaturgia e só fui retomá-la aos 12 anos, quando escrevi uma peça intitulada “O Sentido da Vida”, inspirada por textos do “Caderno H” de Mario Quintana e pela peça “Sobre Anjos & Grilos”, encenada por Deborah Finocchiaro.
            A partir dos nove anos, minha escrita passou a ser determinada pelas minhas obsessões. Fui obcecada por Nietzsche: escrevi aforismos. Fui obcecada por geopolítica: escrevi sobre o conflito árabe-israelense. Fui obcecada por Oscar Wilde: escrevi um ensaio intitulado “A Alma da Mulher sob o Socialismo”. Fui obcecada por marxismo-leninismo: escrevi sobre Revolução Russa, Revolução Cubana, Revolução Islâmica e Guerra Civil Espanhola. Fui obcecada por “Nouvelle vague”: li Françoise Giroud e Susan Sontang, escrevi sobre Godard. Fui obcecada por impressionismo: escrevi sobre Monet e Renoir. Fui obcecada por escrever: escrevi. Ou ao menos tentei. Foi justamente nessa fase de progresso epistemológico pulsante que eu desenvolvi o que chamo de “baixa autoestima intelectual”. Nada que escrevo me agrada, principalmente no que tange à produção literária. Venho colecionando, desde os nove anos, ensaios, artigos, aforismos, poemas, crônicas, romances e canções que jamais mostrei a quem quer que seja.
Uma única exceção ocorreu no ano de 2016. Aos quinze anos, cursando o terceiro ano do Ensino Médio, tive um “insight” durante uma aula de matemática: escrevi uma paródia do poema “América”, de Allen Ginsberg. Sob o título “Brasil”, trata-se de um desabafo acerca da conjuntura política de nosso país no ano em questão. Nele faço referências a Cazuza, Torquato Neto, Gonçalves Dias, Rubens Paiva, Vladmir Herzog, Sergio Buarque de Holanda, Marighella, Geraldo Vandré, Godard, Marx, Simone de Beauvoir e Hobsbawm. Durante alguns meses consegui gostar do que tinha escrito. Mostrei minha paródia para quatro amigos mui íntimos.
Foi então que, depois de algumas “autoreleituras”, o excesso de citações e referências passou a me causar incômodo. Comecei a me perceber como alguém volúvel, maleável, sem estilo próprio ou personalidade literária. Em uma palavra: influenciável. E, como disse o personagem Lorde Henry, do romance “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, “Toda influência é imoral – imoral do ponto de vista científico. Influenciar uma pessoa é emprestar-lhe a nossa alma.”. Assim sendo, minha alma é um Frankenstein das almas daqueles que me influenciam e “meu estilo” - cheio de citações e paráfrases de outros estilos - é, como diria Mario Quintana, uma “deficiência que faz com que eu só possa escrever como posso”. Há quem diga que essa plasticidade é justificada pela minha pouca idade. É lugar-comum na literatura a noção de que é impossível ter um estilo próprio enquanto se é jovem, no entanto, Goethe, aos 25 anos, provou o contrário ao escrever “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, obra que marcou o início do romantismo. A juventude não é, de forma alguma, um fator limitador na escrita, pelo contrário: citando Oscar Wilde novamente, “não sou jovem o suficiente para saber de tudo”.
            Nota-se, ao longo da minha trajetória na escrita, uma ressignificação do verbo escrever: de início, escrever era apenas sobre formar palavras juntando letras e representar por meio da escrita; posteriormente, escrever passou a significar escrever bem, produzir literatura genuinamente, ser original, ter estilo. Curiosamente, segundo minha própria ressignificação da palavra, eu não sei escrever. Terminemos com um fato engraçado: Aos treze anos fui a uma peça encenada por Deborah Finocchiaro e levei comigo uma cópia da minha peça “O Sentido da Vida”, mas minha “baixa autoestima intelectual” superou minha vontade de entregar o texto em mãos para a atriz. Quando a peça terminou e todos foram aos bastidores conversar com Deborah, deixei minha peça debaixo de uma arma que fazia parte do cenário e saí correndo.

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