segunda-feira, 5 de junho de 2017

Como comecei a escrever

Aluno 172
Reescrita


Minhas mais remotas lembranças envolvem a leitura. Ainda recordo-me das tardes, aos cuidados de minha avó, como se fossem ontem. Demasiado nova para decifrar por mim mesma o universo por trás do objeto que ela segurava, eu a fitava pelo canto dos olhos, logo perdendo o interesse pelo brinquedo que tivesse em mãos ao vê-la tão compenetrada, o olhar perdido no que quer que ela estivesse fitando. Eu sempre a via em posse de algum livro, em determinado momento do dia. Como toda criança, eventualmente fui tomada pela curiosidade e, sentindo-me compelida a descobrir do que a estória se tratava, sentei-me ao seu lado, o braço da nossa velha, porém confortável poltrona, servindo-me de acento. Qual fora minha surpresa, no entanto, ao me deparar com a completa ausência de ilustrações. “Que tipo de livro não possui nenhuma gravura ou desenho?” pensei comigo mesma, atônita, sem compreender como apenas aquelas palavrinhas todas, que para mim não faziam sentido na época, poderiam dar conta de prender o interesse e proporcionar tanto fascínio a uma pessoa. Evidentemente, eu viria a desvendar esse mistério muito em breve.

 As sessões de leitura em voz alta logo tornaram-se um hábito. Nós nos sentávamos na mesma poltrona, nosso lugar predileto, acompanhadas de um café com leite morno, talvez uma fatia de bolo caseiro; uma, ávida para saber o que estava por vir, quais palavras novas - e enigmáticas - seriam descobertas; a outra, encantada pelo interesse que havia despertado naquela menina tão novinha, que aos seus cinco anos de idade, sem sequer realmente compreender o que era dito, via-se tão cativada. Afinal, Dom Casmurro, O Apanhador no Campo de Centeio, A Ilha do Tesouro, entre outros títulos, não são exatamente o tipo de leitura indicados a uma criança. Entretanto, isso não impediu que um elo fosse formado.

Até hoje, não sei explicar exatamente como isso aconteceu. Não recordo-me qual fora o primeiro “livro de adulto” que ela lera para mim, capaz de incitar todo esse encantamento, e tenho a impressão que muitos fatos narrados foram levemente distorcidos para o meu entendimento - ou talvez por não serem exatamente adequados a minha faixa etária. Sendo completamente honesta, rememoro muito pouco do conteúdo das estórias que me foram contadas, mas se há uma coisa que recordo, é o som da voz de minha avó, sempre calma e terna, mas ao mesmo tempo animada, capaz de fazer as mais divertidas entonações ao ler, e seu toque cuidadoso, virando as páginas com a mesma gentileza que acariciava meus cabelos. Talvez tenham sido esses pequenos detalhes que me cativaram ou talvez eu quisesse ser capaz de experimentar tudo de bom que eu achava que ela sentia ao ler um livro. Talvez, como toda criança, eu só quisesse ser como alguém que eu amava e admirava.

Efetivamente, entretanto, o tempo destinado às nossas leituras já não era mais suficiente para me satisfazer. Não foram poucas as vezes que fui flagrada em algum cômodo da casa, com um livro aberto sob o colo, tagarelando sozinha sobre as supostas aventuras que estariam ali escritas. Eu não só estava ansiosa para aprender a decifrar todos aqueles símbolos por mim mesma e poder ler tudo que estivesse ao meu alcance, como também não via a hora de ser capaz de escrever minhas próprias estórias e transpassar no papel toda a imaginação que uma criança possui. Logo, não é uma surpresa o fato de que começar a estudar e ser alfabetizada foi uma conquista repleta de gratificação para mim. Para mim e para minha avó, que esteve sempre muito presente nesse âmbito de minha vida.

Creio ter sido assim que meu gosto pela escrita nasceu. Ou melhor dizendo, meu gosto pelas palavras, que podem ser tanto escritas, quanto lidas e cantadas. Eu definitivamente me apaixonei pelas palavras, pela sua estrutura, variações e significados. O lápis e o papel tornaram-se meus grandes companheiros e aliados, toda e qualquer oportunidade eu usava para escrever: felicidades, desilusões, qualquer acontecimento. Fosse sobre meus sonhos ou meu dia a dia, definitivamente, no papel, eu os eternizaria. Em suma, fora diverso meu aprendizado. Repleto de tropeços, frustrações e insegurança, mas acima de tudo, de um prazer inexplicável. Os erros cometidos nos ditados e nas redações, os eventuais risinhos dos colegas em sala de aula, a aparente falta de suporte no meio escolar, a insatisfação com o resultado de um projeto com o qual eu havia me dedicado, nada disso fora capaz de abalar completamente o elo que há muito havia sido criado.

E por fim, acima de tudo, eu sempre teria uma pessoa especial a quem recorrer, que sentaria ao meu lado e, com um sorriso sincero, me asseguraria que não há mal algum em cometer erros e que eu possuía, ainda, uma longa estrada a percorrer. Nossa antiga poltrona não mais existia, mas nada nos impedia de retomar aquele lindo e velho hábito. Mas dessa vez, com algumas mudanças. A narradora seria eu, que além de ler obras para nós duas, exporia minhas próprias autorias. O olhar nervoso no papel, desviando rapidamente em busca do dela, à procura daquele antigo encantamento que tão bem eu reconhecia e percebendo, além disso, um doce olhar que me transmitia uma satisfação sublime, que contagia.

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