sábado, 3 de junho de 2017

Noite Amarga

Reescrita
Aluno 162



O bar cheirava a álcool e cigarro. Sempre adorei esse perfume, ele me remete as noites da Cidade Baixa, o bairro de festas de Porto Alegre. Naquela noite específica, eu estava a procura exatamente dessa atmosfera decadente dos botecos da CB. Entrei, então, em um botequim qualquer, sentei sozinha em uma mesa qualquer e, acompanhada de um caderno qualquer, pedi uma grande dose de inspiração para desenvolver as páginas estagnadas de meu romance. Os fatos que se sucederam, porém, relutaram tanto em seguir esse padrão de irrelevância quanto a me oferecer a inspiração necessária. Na verdade, naquela noite quente e lenta de verão, não escrevi nada. Entretanto, eu tomei ciência de três conceitos muito presenciados, mas ao mesmo tempo desconhecidos, na vida de uma mulher.
Minha mente estava a divagar sobre a importância da solidão quando eles entraram. Subitamente, eu não estava mais sozinha, minha atenção foi retirada de meu caderno e levada a acompanhar a moça de madeixas róseas. Ela era seguida por mais outra menina e três rapazes. O grupo sentou-se em uma mesa enquadrada perfeitamente no meu campo de visão. Eu observei, então, como através de uma moldura, o modo com que os cabelos castanhos da outra menina eram cortados rente ao queixo e como seus braços envolviam confortavelmente o homem barbudo de óculos. Meu olhar caminhou até os outros dois rapazes, os quais sentaram-se a uma cadeira de distância da moça de madeixas róseas, reparei que um deles possuía uma armação de óculos transparente e o outro vestia uma blusa estampada com besouros, peculiar, pensei.
Durante os 30 minutos que procederam a chegada do grupo, eles pediram uma rodada de chope e, acredito eu, jogaram conversa fora. Apesar da minha visão privilegiada, a distância que eu me encontrava da mesa fazia com que chegasse a mim apenas o típico burburinho de vozes entrelaçadas. Eu não conseguia decifrar o assunto da conversa. Voltei minha atenção, pois, para a moça de madeixas róseas, a cor de seu cabelo havia me intrigado, me presenteando com uma ideia para uma personagem. Comecei rapidamente a trabalhar na construção de Amélia, com medo de que a inspiração momentânea fugisse da ponta do lápis. Não tinha escrito nem o sobrenome da coitada, quando a moça de cabelo rente ao queixo levantou a voz em tom de urgência, levantando junto a minha atenção. Ela estava repreendendo o moço de camiseta de besouros.
Nunca saberemos qual era a pauta da discussão. Não importa. Poderia ser sobre qualquer coisa, desde o último livro de Harry Potter à eleição para Presidente da República no ano seguinte. O que realmente nos interessa era o padrão estabelecido no conflito: a moça de madeixas róseas tentava falar, logo sua voz era abafada por um dos dois homens sentados a uma cadeira de distância. “Manterrupting” é o termo derivado da junção das palavras “man” e “interrupting”, respetivamente, “homem” e “interrupção”. Esse termo designa a mania irritante que os homens têm de julgarem-se dignos de interromper a fala de uma mulher, apenas por serem, veja bem, homens.
A moça de cabelo rente ao queixo tentava falar, mas era recebida com um movimento de cabeça negativo pelos mesmos dois rapazes, os quais logo em seguida começavam a argumentar calmamente, como se estivessem falando com uma criança. “Mansplaining”: a junção de “man” (homem) e “explaining” (explicação), ou seja, o hábito insuportável de os portadores dos cromossomos XY acharem que sabem mais que uma mulher e, por isso, devem explicar a ela algo muito óbvio de uma maneira muito simples, que eles presumem ser “apropriados”. O mais irritante desse fenômeno é que, muitas vezes, os homens tentam explicar justamente o que nós, mulheres, estávamos falando. É como se eles dissessem “Não, não, não. Você, mulher, não entende isso da mesma forma que eu, homem. Deixe-me lhe explicar…”.
O rapaz barbudo, porém, falava e eles ficavam quietos, ouvindo. “Brotheragem”, esse incrível fenômeno antropológico ocorre devido ao respeito mútuo nas relações estabelecidas de homem para homem. É um conceito abrasileirado e deriva da união de “brother” ao sufixo “agem”, exprimindo a ideia de uma ação. Resumindo, homens irão sempre proteger outros homens.
 Essa discussão​ me deixou perplexa por um tempo. Mesmo após o grupo já ter ido embora, as meninas e o homem barbudo pra um lado e os outros dois moços pro outro, continuei fixa em meu lugar. Sentada ali, sozinha, na mesa do bar, fiquei angustiada a refletir sobre o ocorrido. Eu conseguia encontrar situações iguais na minha vida. Situações de interrupção, silenciamento, situações tão naturalizadas que foi preciso eu ser a espectadora para entender. Enfurecida, levei a cerveja à boca, estava quente e amarga, como aquela noite.
Chegando em casa, jogada na cama, decidi que deveria escrever sobre isso, na esperança de mais mulheres poderem compreender como funciona a nossa sociedade. Esses três fenômenos implicam que, seja em uma mesa de bar ou em uma mesa de reunião, o discurso proferido por um portador dos cromossomos XY sempre será mais ouvido, sempre mais considerado.  Mas não escrevi nada disso naquela noite. Naquela noite só consegui ficar lá, jogada na cama, pensando.



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