sábado, 3 de junho de 2017

PELO DIREITO DE APRENDER

Aluno 152
Reescrita


“Filha, hoje tu vai pra casa com o teu irmão, teu pai ta no hospital”. Quando minha mãe me disse isso, eu tinha exatos 11 anos e, mesmo sendo uma criança, comecei a pensar em todas as possibilidades que poderiam ter acontecido: doença, acidente ou até mesmo abdução alienígena; tudo que já tinha visto nos filmes se passou pela minha cabeça. Contudo, a fim de me tranquilizar, meu irmão mais velho falou: “Não te preocupa, foi só uma crise de estresse, assunto entre ele e a mãe.”. Palavras as quais não fizeram sentido pra mim na época e que optei por ignorar, já que algumas horas depois meu pai estava de volta em casa.
Desde então, algumas sutis mudanças ocorreram e passaram desapercebidas pelos meus olhos infantis. Eu e meu irmão continuávamos acordando pela manhã e indo à cozinha para tomar café antes da aula; meu pai ainda sentava-se à ponta da mesa e passava os olhos pelas manchetes do jornal, sempre proferindo em alto tom, as reclamações sobre o governo, a inflação e as “malditas feministas” que só atrapalhavam sua vida; e enquanto isso, minha mãe corria de um lado para o outro, feito uma locomotiva a todo vapor, que levava às pressas as roupas para dobrar, a louça para lavar e as crianças para estudar. A única diferença em meu cotidiano foi na volta da escola, que começou a ser na companhia de meu irmão e não mais de minha mãe, como era antes do incidente.
Eu percebia que a tarde transcorria, a noite chegava e a janta não tinha mais o mesmo sabor, pois agora era meu pai que cozinhava. A hora de dormir significava ver minha mãe de novo. Ela chegava passo a passo para não me assustar; leve e delicada como uma das fadas que eu tanto admirava nos livros infantis e cujos quais ela, mesmo cansada, lia até meu sono chegar. Além disso, desde que meu pai voltara do hospital, algumas vezes quando eu acordava no meio da noite para ir ao banheiro, o encontrava dormindo no sofá e minha mãe a chorar baixinho em seu quarto.
Poucos meses após o fatídico dia, eu tive dois momentos que proporcionaram meu pleno despertar para o que ocorria em minha família. No primento deles, enquanto eu estava sentada à mesa da sala, vi minha mãe se aproximar e perguntar algo até então inimaginável para mim: “Filha, como se calcula uma fórmula de Bhaskara?”. Assim, após alguns segundos atônita, eu associei às informações dos últimos dias e minha mente explodiu em surpresa e alegria, como se existissem fogos de artifício dentro de mim. Minha mãe, com 46 anos havia voltado a estudar e eu, resplandecia de alegrias por ela. Em sua trajetória de vida, eu sempre soube que ela foi retirada da escola depois de completar a quarta série, pois segundo seus pais, era o suficiente que uma mulher precisava aprender.
Desse modo, tive meu segundo baque com a realidade, pois percebi que meu pai partilhava desse pensamento arcaico e foi isso que o levou ao hospital meses atrás. A simples ideia de sua esposa estar fora de casa a noite deixou-o tão perturbado que sua mente não resistiu e sucumbiu a uma crise nervosa. Naquele momento, as soltas reclamações matinais dele começaram a fazer sentido para mim. As frases: “Mulheres tem que ficar em casa para cuidar da família”; “Fazer comida não é função de homem”; “Sair sozinha a noite é coisa de mulher que quer chamar atenção”; eram algumas das que ele proferia com amargura e dor na voz, como se cada palavra fosse uma espada em seu próprio peito.
Apesar da raiva que senti daquele que era meu progenitor, por ele ser como os pais de minha mãe e tentar privá-la da busca pelo seu direito de aprender, esse sentimento foi também o que me deu forças para apoiá-la. Eu e meu irmão nos unimos e dividimos as tarefas da casa entre nós; começamos a ajudá-la nos trabalhos de aula; e eu nunca mais abaixei a cabeça para as injustiças que ele tentava impor. Atitudes que serviram de gatilho para uma luta, que perdura até hoje, contra os pensamentos machistas do meu pai.
Assim, atualmente minha mãe possui o segundo grau completo e não estuda mais; meu pai mudou um pouco da sua postura autoritária, mas ainda tem a necessidade de fazer da sua a última palavra em qualquer argumentação; meu irmão não mora mais conosco; e eu ainda aplico em minha vida o que absorvi com esse episódio essencial para que eu amadurecesse.
Ele me levou a confiar em minha força interior para alcançar meus objetivos; sem nunca permitir que alguém tentasse delimitar o meu lugar na sociedade por eu ser um indivíduo do sexo feminino. É pela luta de minha mãe e pelo que aprendi com ela, que me encontro aqui, escrevendo esse texto. Com muito orgulho sou mulher e estudante, assim como minha mãe também foi um dia.

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