sábado, 3 de junho de 2017

Hábitos de Infância

Reescrita
Aluno 162



Eu ainda me lembro do calor do corpo de minha mãe ao meu lado. Sua voz aveludada acariciando meus ouvidos, seu cheiro de mãe inundando o quarto. Eu ainda me lembro do som áspero das folhas passando ao toque das mãos, das palavras enigmáticas e dos desenhos coloridos cravados no papel. Eu ainda me lembro da gostosa sensação de proteção maternal contra os espinhos da cama e monstros imaginários. Foi assim que eu aprendi a escrever antes de saber escrever.
            Meu quarto era todo azul bebê com branco. Um cubículo pequeno, mas grande o suficiente para uma criança colar desenhos e recortes de revista nas paredes. A janela, então, nem se fala, era ornada com adesivos da mais alta qualidade, desde figurinhas com glitter às que vinham de brinde nos salgadinhos. O chão, de madeira escura, era frio ao toque do pé descalço. Até hoje, já em outro quarto, meus pais ainda me pedem que eu coloque meias nos pés. Eu ainda não coloco. Alguns hábitos, eles diriam, nunca mudam, inclusive se forem cultivados na infância. Voltemos, porém, ao cômodo da minha infância: eu me recordo muito bem da cama arrumada com um edredom rosa felpudo. Minha mãe sempre gostava de se gabar daquela cama: por ser de madeira maciça, por ter sido dela, depois da minha irmã e, finalmente, minha. Mas eu gosto é de me gabar por ter sido o cenário principal de minha introdução literária.
"Mãe, mãe, me conta a história da ‘Bela e a Fera’ de novo! ”
Como eu tinha medo de dormir sozinha, minha mãe se deitava comigo. Nos expremíamos na cama diminuta -porém de madeira maciça- e ela começava a falar. Contava as histórias para mim até eu pegar no sono e, se por acaso isso não acontecesse, ela permanecia do meu lado até meus olhos se fecharem, o que as vezes durava a noite toda.  O conto de fadas “A Bela e a Fera” era o nosso preferido e minha mãe sabia narrá-lo como ninguém. Desde a casa no campo, com um jardim cheio de flores e uma horta recheada de verduras até a estrada pedregosa e árdua que desembocava no magnífico palácio do príncipe, com seus objetos dourados e falantes.
“Aí, mãe, eu cansei das mesmas histórias todos os dias. Inventa uma hoje? ” Eu pedia para a minha exausta  mãe após um dia inteiro de trabalho.
Então ela contava sempre a mesma história, inventada por si, de um sapinho. Aquilo que me deixava irritada. Assim não vale, eu pensava, queria algo diferente. Mas ficava quieta, a ouvindo de baixo das cobertas quentinhas, aninhada em seus cabelos.
E assim toda noite o ritual se repetia. O sol ia cedendo espaço à lua e, junto dela, a minha angústia crescia, pois eu sabia que ia ter de dormir sozinha. Então, eis que minha mãe entrava no quarto para me distrair com seu poder de narrativa; “A Bela e a Fera”, “Cinderela”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Ariel”, “Branca de Neve”, “Os Três Porquinhos” invadiam o recinto e pesavam minhas pálpebras. Esse primeiro contato tão íntimo com a literatura me marcou profundamente e, assim como andar de pé descalço, escrever virou um hábito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário