Reescrita
Aluno 162
Eu ainda me lembro do calor do
corpo de minha mãe ao meu lado. Sua voz aveludada acariciando meus ouvidos, seu
cheiro de mãe inundando o quarto. Eu ainda me lembro do som áspero das folhas
passando ao toque das mãos, das palavras enigmáticas e dos desenhos coloridos
cravados no papel. Eu ainda me lembro da gostosa sensação de proteção maternal
contra os espinhos da cama e monstros imaginários. Foi assim que eu aprendi a
escrever antes de saber escrever.
Meu
quarto era todo azul bebê com branco. Um cubículo pequeno, mas grande o
suficiente para uma criança colar desenhos e recortes de revista nas paredes. A
janela, então, nem se fala, era ornada com adesivos da mais alta qualidade,
desde figurinhas com glitter às que vinham de brinde nos salgadinhos. O chão,
de madeira escura, era frio ao toque do pé descalço. Até hoje, já em outro
quarto, meus pais ainda me pedem que eu coloque meias nos pés. Eu ainda não
coloco. Alguns hábitos, eles diriam, nunca mudam, inclusive se forem cultivados
na infância. Voltemos, porém, ao cômodo da minha infância: eu me recordo muito
bem da cama arrumada com um edredom rosa felpudo. Minha mãe sempre gostava de
se gabar daquela cama: por ser de madeira maciça, por ter sido dela, depois da
minha irmã e, finalmente, minha. Mas eu gosto é de me gabar por ter sido o
cenário principal de minha introdução literária.
"Mãe, mãe, me conta a história
da ‘Bela e a Fera’ de novo! ”
Como eu tinha medo de dormir
sozinha, minha mãe se deitava comigo. Nos expremíamos na cama diminuta -porém
de madeira maciça- e ela começava a falar. Contava as histórias para mim até eu
pegar no sono e, se por acaso isso não acontecesse, ela permanecia do meu lado
até meus olhos se fecharem, o que as vezes durava a noite toda. O conto
de fadas “A Bela e a Fera” era o nosso preferido e minha mãe sabia narrá-lo
como ninguém. Desde a casa no campo, com um jardim cheio de flores e uma horta
recheada de verduras até a estrada pedregosa e árdua que desembocava no
magnífico palácio do príncipe, com seus objetos dourados e falantes.
“Aí, mãe, eu cansei das mesmas
histórias todos os dias. Inventa uma hoje? ” Eu pedia para a minha exausta
mãe após um dia inteiro de trabalho.
Então ela contava sempre a mesma
história, inventada por si, de um sapinho. Aquilo que me deixava irritada.
Assim não vale, eu pensava, queria algo diferente. Mas ficava quieta, a
ouvindo de baixo das cobertas quentinhas, aninhada em seus cabelos.
E assim toda noite o ritual se
repetia. O sol ia cedendo espaço à lua e, junto dela, a minha angústia crescia,
pois eu sabia que ia ter de dormir sozinha. Então, eis que minha mãe entrava no
quarto para me distrair com seu poder de narrativa; “A Bela e a Fera”,
“Cinderela”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Ariel”, “Branca de Neve”, “Os Três
Porquinhos” invadiam o recinto e pesavam minhas pálpebras. Esse primeiro
contato tão íntimo com a literatura me marcou profundamente e, assim como andar
de pé descalço, escrever virou um hábito.
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