Aluno 172
1 Versão
Todos aprendemos, desde muito cedo, que não devemos mentir.
Creio que seja um dos primeiros ensinamentos que os pais visam passar aos seus
filhos: a mentira é errada; a mentira traz consequências; a mentira não vale a
pena. Entretanto, eventualmente as crianças aprendem que distorcer a verdade,
muitas vezes, tem suas vantagens e algumas delas acabam tornando essa prática
um diabólico hábito. Meu amigo, Eduardo, foi um desses casos.
Eduardo era um menino comum de 13 anos: hiperativo, magrelo
e possuidor de um apetite voraz. Sendo o mais velho do nosso quarteto de
amigos, ele consequentemente tomou para si um certo posto de liderança: estava
sempre apto a sugerir as brincadeiras mais arriscadas e tomar a frente para
executá-las. Sem dúvidas, o fato de ser o mais velho entre nosso pequeno grupo,
que se constituía dele, de um menino de 12 anos e duas meninas de 11, contando
comigo, definitivamente tinha certa influência; sua imaginação absurdamente
fértil, contudo, foi certamente o aspecto que mais nos estimulava a segui-lo.
Essa criatividade toda, no entanto, não era usada somente
para impressionar sua pequena platéia particular. O garoto adquiriu um dom
especial de inventar as desculpas mais oportunas para os mais diversos
momentos. Toque de recolher nos finais de semana? Nem pensar, ele sempre
arrumava uma razão convincente o suficiente para que sua mãe estendesse o prazo
por, pelo menos, mais uma hora. Uma prova para o qual ele não ele estivesse
preparado? O espertinho certamente não iria a aula e inventaria a história
trágica mais persuasiva possível, convencendo qualquer professor a permitir que
ele fizesse a avaliação na semana seguinte. Levar a culpa por comer os doces da
irmã mais velha? Jamais, ele sempre conseguia se safar da punição, deixando a
irmã caçula, consequentemente, em maus lençóis. Ainda assim, esse comportamento
não era exatamente visto como algo fora do normal ou altamente prejudicial. Não
obstante, mais cedo ou mais tarde, a situação sairia de seu controle.
Assim como Ícaro deslumbrou-se com a possibilidade de voar e
agiu de forma insensata, ao ponto de perder suas asas, Eduardo também
ultrapassou os limites do bom senso a partir do momento que começou a mentir e
elaborar desculpas para praticamente todas as circunstâncias, das mais banais
às mais sérias, tudo para conseguir o que desejava. Inevitavelmente, ele também
perderia suas asas e encararia as consequências. Eis a primeira vez que isso
ocorreu:
Era o auge do verão e estávamos todos de férias. Depois de
passarmos os últimos dois dias de chuva, trancados dentro de casa, finalmente
nos reunimos, prontos para aproveitarmos aquela tarde. É preciso explicar, de
antemão, que nosso quarteto de amigos tinha algumas peculiaridades, uma delas
era a de chamar de “missão” nossas atividades mais aventurosas. A proposta do
dia era que atravessássemos a Chácara do Tio Boquinhas - uma propriedade não
muito longe de nossas casas. Nossa rua não possuía saída, havendo, em sua extremidade,
uma espécie de cume, de cerca de um metro e oitenta centímetros de altura, que
ao descê-lo dava acesso ao terreno. A tal chácara tinha um aspecto abandonado,
pelo menos dois terços do espaço estava coberto de árvores e um mato denso e
bastante alto. Estávamos planejando essa missão há algumas semanas, após muita
insistência de Eduardo. Ele, sendo o mais velho, era o único que podia se
afastar mais da vizinhança e havia garantido que do outro lado da chácara havia
uma saída de fácil acesso e que, portanto, não havia razões para que nada desse
errado. Ou pelo menos, foi nisso que ele nos fez acreditar.
A primeira mentira foi referente a propriedade. Eu não fazia
ideia de que meu amigo havia mentido ao afirmar que a chácara não apenas
parecia estar abandonada, mas que ela realmente estava. Nós havíamos espionado
a propriedade usando binóculos, a partir do cume na extremidade da nossa rua,
diversas vezes, por isso não vi motivos para não crer na palavra dele; no
entanto, o cão de guarda que encontramos ao tentar sair da chácara afirmava o
contrário. A segunda mentira daquele dia foi o líquido grudento (que hoje
desconfio ter sido água com sabonete) que ele trouxe e nos fez passar,
assegurando ser uma espécie de repelente para mosquitos; até hoje me recordo das
feridas causadas pelos pernilongos daquele lugar. A terceira foi a terrível
surpresa que tivemos, após levarmos cerca de meia hora atravessando aquele
matagal, ao nos depararmos com uma cerca de arames farpados, aparentemente
instranspassável, do outro lado; Eduardo tinha um alicate na mochila, mas
nenhum de nós permitiu que ele danificasse a cerca, portanto fomos obrigados a
retomar o caminho pelo qual havíamos vindo. Depois de todos os transtornos e a
revolta para com o líder impostor, sofremos o já mencionado ataque do cão de
guarda. Alguém certamente deve ter ouvido nossa discussão e soltado o cachorro.
Felizmente, já estávamos próximos do cume e conseguimos
todos nos salvar. Eduardo, no entanto,
foi o último a subir e perdeu uma de suas botinas para o cão que visava
abocanhar seu pé. Teve apenas um ferimento superficial que não o impediu de
correr como um desvairado, mesmo sabendo que já estávamos seguros. O alívio foi
passageiro, entretanto, pois a partir daí as coisas só pioraram. A mãe dele logicamente
percebeu, ao vê-lo chegar em casa suado, machucado, e sem um par dos calçados,
que ele não havia passado a tarde na casa de um colega estudando. Não havia
mentira que o salvasse dessa vez. A verdade veio à tona, e não afetou somente a
ele, a senhora Cacilda fez questão de avisar os pais de todos os envolvidos no
esquema de invasão de propriedade. Todos foram postos de castigo, obviamente.
Os dias quentes, encarcerados, cheios de coceiras devido às picadas de
mosquitos, serviriam para uma longa e penosa reflexão. Cheguei a conclusão de
que certas mentiras realmente não valem à pena, mesmo que elas sejam o modo
mais fácil de alcançar nossos objetivos, e que amigos que mentem demais para os
outros, podem muito bem estar enganando você também.
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